Translate

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

DE ALMA PARA ALMA



PREPARA-TE PARA A VIDA
 
Disseste-me, alma amiga, que a grande tarefa da tua vida era preparar-te para a morte. Que só desejavas uma boa morte – e nada mais. Se pensaste às direitas – falaste às avessas. Tu, que tens saúde, inteligência, preparo – Tu, que vives a primavera da vida – Tu, que entras no mundo de braços abertos – Tu, que inicias a grande viagem – Não deves falar em preparar-te para a morte – prepara-te para a vida! Se boa for tua vida – não será má tua morte. Não sabes que a morte é o corolário da vida? Ignoras que o morrer é o eco do viver? Como podia ser má tua morte, se boa foi tua vida? Receias a morte qual negro fantasma? Por que hesitaria a fruta madura em desprender-se da haste? Por que se desprenderia com dor o que amadureceu com amor? Não te prepares para desapegar-te da árvore – vive como deves, e será espontâneo e natural o teu desapego... Não morras antes de viver – não faças o segundo antes do primeiro! Não faças a causa depender do efeito! Não penses no sono noturno – antes de entregar-te aos labores diurnos! Não chores o ocaso – antes do sorriso da aurora! Enche de grandes tesouros a barquinha de tua vida – e entra contente nas águas do porto!

Semeia mãos-cheias de áureos cereais – e recolhe farta messe de fruto maduro! Carrega de flores a primavera da vida – para que de frutos te carregue o outono da morte! Prepara-te para a morte – enriquecendo tua vida! A morte não faz o que a vida não fez – colhe-te como és. A morte não retoca tua alma – revela apenas o que a vida fotografou. Sombras e luzes – boas e más perspectivas... Revela às claras o que às escuras diziam imagens latentes... Eternamente serás o que em tempo a vida te fez... Prepara-te, pois, para a vida – e a morte dirá o que foi tua vida... Faze da vida uma sementeira do bem – e será a morte uma colheita de felicidade... Liberta o espírito das algemas do ego – e a morte te levará ao seio de Deus. À vida eterna... Ao amor imortal...

 
SER ALGUÉM

Amigo! Se quiseres escrever para a humanidade o que a torne melhor – sê tu mesmo o início dessa humanidade melhor... Sê uma célula sadia – do organismo convalescente. Sê primeiro em tua pessoa – o que desejarias fossem os outros. Começa a reforma do gênero humano – pela reforma do teu Eu individual. Primeiro na própria casa – depois na casa do vizinho. De dentro para fora – do componente para o composto... Está em teu poder reformar a sociedade – ao menos em uma das suas partes integrantes... Sem uma grande realidade ou um grande ideal ninguém pode ser grande – e como poderia prestar grandes coisas quem não é grande? Cada um é o secretário do próprio Eu – só pode escrever o que o dono lhe ditar. Cada um é o eco de sua alma – só reproduz com palavras o que ela é de fato. Para ser grande não basta fazer algo – é necessário ser alguém. De alma para alma é que atua o poderoso fluido da personalidade. De espírito a espírito tece o homem os invisíveis fios do seu destino – e o destino dos outros. Do Eu para um Tu se lança a torrente vital dos grandes vultos da história. A mais eficaz propaganda de tua obra, meu amigo – és tu mesmo... Não o teu ego periférico – mas o teu Eu central. Sem um genuíno auto-conhecimento – não haverá verdadeira auto-realização. Não faças reclamo de ti mesmo – pois seria o limite da tua grandeza – mas sê a alma de tua obra.

Não interessa a ninguém o que estudaste, decorastes ou sabes – interessa somente o que tu és. Se não és alguém, ninguém te pode garantir a vitória – se és alguém, ninguém te pode derrotar. Mais do que o teu conhecer – é o teu ser, que atua sobre outros seres. Pode-se aprender a ler, escrever e contar – mas não se pode aprender com meras teorias a ser alguém. Para ser alguém, deve o homem ter consciência da sua Realidade. Deve guardar absoluta fidelidade ao íntimo ser. Deve ser integralmente sincero consigo mesmo. Deve saber unir a justiça ao amor. Deve preferir a retilínea convicção às curvilíneas convenções da sociedade. Deve ter linhas definidas como o cristal – e não ser argila amorfa. Deve imolar a escravidão farta na ara da liberdade austera. Deve ser um eco do Eterno – no deserto do mundo efêmero. Um emissário de Deus – no meio da humanidade. Deve estar disposto a sacrificar os mais belos ídolos do ego – ao único ideal do Eu.

 
ENFERMIDADE REDENTORA

Vim senta-me à tua cabeceira, meu amigo doente, para dar-te sinceros parabéns. Parabéns, não pela fraqueza da carne – mas pelo vigor do espírito. Não pelo que sofres – mas pelo modo como sofres... Nunca te vi com tanta saúde como agora... Alijaste o lastro supérfluo com que soem os homens sadios onerar a barquinha da sua vida... Habituaste o espírito a não correr atrás das pequenas e grandes ilusões que regem a sociedade. O sofrimento tornou tua alma livre e desapegada de tudo... Ganhaste distância e perspectiva em face das realidades da vida... Tuas ideias e opiniões adquiriram algo de universal e eterno... Libertou-te a dor das doenças infantis de que laboram os profanos gozadores. Invejas e ciúmes, cobiças e luxúrias, nervosismos e impertinências e ridículas susceptibilidades – tudo isto foi reduzido a cinzas no fogo do sofrimento... “A força aperfeiçoa-se na fragilidade” – dizia mestre Paulo. Pela primeira vez, meu amigo, te vejo homem perfeito – porque sofredor vitorioso... Quanto mais e melhor o homem sabe sofrer – tanto mais vasto se torna o seu espírito, mais sincera a sua caridade, mais indulgente o seu juízo, mais larga a sua compreensão – mais sereno e calmo todo o seu ser... Só o homem sofredor compreende o mundo e os homens... Quem não sofreu vive num sono hibernal – não compreende as realidades da vida... Vive numa ilusão permanente – aquilata falsamente as coisas. O Cristianismo, a religião da verdade, é o evangelho da cruz.

Só no Gólgota atinge o homem compreensão integral... Só nas trevas da noite despontam as estrela do céu... Do homem espiritualmente sanado pela dor irradiam virtudes curativas – para espíritos enfermos... Invisível torrente de energia – para robustecer os fracos... Paz e harmonia, calma e serenidade, inefável poesia, felicidade profunda – dimanam do homem divinizado pela dor... Pelo amor doloroso foi Jesus redimido – e sem sofrimento não há redenção humana. Nada pode o mundo esperar de um homem que algo espera do mundo. Tudo pode o mundo esperar do homem que nada espera do mundo.

 
VAGALUMES

Vislumbrei, em plena noite, tuas lanternas fosfóreas – meu pequenino vagalume. E pasmei... Não do fulgor das tuas luzes – mas da grandeza da tua presunção. Achas que não há luz fora das tuas luzinhas? Consideras tua cabeça como única fonte de toda a claridade? Julgas que todo o mundo é tenebroso – sem tua presença? Sabes por que tão vivos te parecem os teus “holofotes”? Porque tão profunda é a escuridão que te cerca. Não voasses de noite, não passasses o dia dormindo, meu ignorante vagalume – verias no céu um luzeiro imenso... Comtemplarias oceanos de claridade espraiados de horizonte a horizonte... Verias epopéias de cores derramadas por todas as latitudes e longitudes do mundo... Ouvirias os ares repletos de apoteoses aos raios solares... Sentirias o perfume das flores a incensar o trono do grande amigo... E tuas lanternas seriam antes trevas que luz... Vislumbrei em plena noite, tuas fosforescências cerebrais, humano vagalume. E pasmei!... Pasmei ao ver que ignoras a tua própria ignorância. O sábio sabe que nada sabe – o ignorante ignora que nada sabe. Saber o seu não-saber é o princípio da sabedoria. Ignorar a sua ignorância é fechar a porta ao saber. Aquilo é escola primária – isto, analfabetismo completo.

Qual pequenina esfera lançada ao mar é o nosso saber no oceano do não- saber. Quanto mais se avoluma a esfera, maior se torna o contato com as águas circunfusas – e quanto mais cresce o nosso saber, mais conscientes se nos torna o não-saber que nos envolve de todos os lados. Por isso, o sábio crê mais na sua ignorância do que na sua sapiência. Desta, pode ele duvidar – daquela, tem plena certeza. À medida que a ciência aumenta – aumentam os pontos de contato com o mar da ignorância em que flutua a modesta esfera. E, como o mar é imenso e a esfera pequenina, professa o ciente sincera humildade – porque humildade é verdade. Acende-se-lhe na alma uma sede imensa de fé... De fé na palavra de quem saiba o que aquele ignora... Um fé para enriquecer a sua pobreza... Uma fé para encher com divina plenitude a sua humana vacuidade... E eclipsam os fulgores solares as lanternas fosfóreas... Desperta o vagalume, do sonambulismo noturno. Para a vigília diurna...


Huberto Rohden, de Alma para Alma
https://pt.slideshare.net 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário