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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

DA INSEGURANÇA À SEGURANÇA



A verdadeira libertação do homem consiste essencialmente numa definitiva segurança baseada na verdade. O homem totalmente ignorante da verdade também se sente seguro, mas a sua segurança provém da ausência da verdade. É a sua “infeliz felicidade”, possível somente mercê das trevas em que vive; esse homem nem sequer suspeita a possibilidade de algo maior para além do estreito âmbito da sua vivência primitiva. É a tranquilidade da minhoca, plenamente satisfeita com o húmus que digere no fundo da terra, incapaz de desejar o vôo das aves ou das borboletas. 
 
A ignorância absoluta dá segurança, uma pseudo-segurança negativa, que está aquém da insegurança daqueles que já ultrapassaram esse estágio ínfimo e começaram a vislumbrar algo para além da estreita barreira da sua inexperiência. Mas, quando desperta no homem algo das suas possibilidades latentes; quando ele principia a adivinhar ao longe possibilidades realizáveis, porém ainda não realizadas – então começa a oscilar em sua alma a misteriosa agulha magnética de profundas potencialidades; então desperta o dormente heliotropismo do seu desconhecido Eu, que lhe fala duma luz que existe para além das trevas em que vive... Então entra esse homem numa “feliz infelicidade”, numa estranha inquietação metafísica, oriunda da distância entre aquilo que ele é explicitamente e aquilo que ele é implicitamente, entre a sua conhecida atualidade e as suas desconhecidas potencialidades. Esse homem começa a crer em algo que ele ainda não viveu, mas poderá viver. Essa fé não é senão uma longínqua reminiscência da sua origem passada, que preludia o seu destino futuro. Essa gestação espiritual é dolorosa e, ao mesmo tempo, prenhe de promessas alvissareiras – mas esse homem não tem certeza se ela acabará em triste aborto ou num parto feliz. No meio das penumbras dessa insegurança, que envolvem invariavelmente o período da crença, começa o homem a tatear em derredor, em busca de algum ponto fixo nesse mundo movediço; procura descobrir um rasto no deserto, um caminho em plena floresta... Encontra ao redor de si homens que seguem na mesma direção e que parecem ter certa segurança; e descobre que essa segurança lhes vem do apego a certos dogmas, ritos, tradições, técnicas e sistemas doutrinários.
 
E esse crente inseguro encontra certa segurança no apego à convicção de seus companheiros de jornada, convicção que lhes serve de muletas a que arrimar-se, ou de andaimes para construir o seu edifício espiritual incompleto. O homem primitivo encontra certa segurança na fé e na obediência incondicional a certas doutrinas e práticas, que os seus chefes espirituais lhe apresentam, como sendo a genuína revelação de Deus. O grosso da humanidade está, atualmente, nesse plano, na fase de uma relativa segurança espiritual oriunda da crença num mundo invisível mais real que este mundo visível. É cada vez mais impossível estabelecermos um credo-padrão, igual para todos, tanto para o místico de elevadas experiências divinas como para sua cozinheira analfabeta cujo cristianismo esteja todo no catecismo e na escola dominical. A Realidade é, certamente, uma só, eterna e imutável, mas o contato que os homens têm com a Realidade varia de pessoa a pessoa, e, como o credo é precisamente o reflexo desse ponto de contato entre o finito e o Infinito, são necessariamente tantos os credos quantos os indivíduos. Seria crueldade tentarmos destruir na alma dos pequeninos essa crença na Realidade espiritual, que lhes dá orientação e força no meio das trevas e dos sofrimentos da vida terrestre. Não temos, absolutamente, essa intenção sacrílega. Pelo contrário, recomendamos a todos os nossos leitores que continuem a trilhar firmemente o caminho da sua fé. Não contemplamos com desdenhosa sobranceria os viajores que enchem os caminhos da fé; sabemos que eles estão dentro da grande lei da evolução, uma vez que todo saber experiencial é precedido de um crer obediencial; ninguém pode saber por experiência própria o que não tenha crido por obediência a normas alheias; ninguém pode atingir a plena adultez espiritual sem que passe pela infância e pela adolescência das fases preliminares, seja do entender intelectual, seja do querer volitivo – e esse querer é o crer, é a boa vontade da fé, que admite a Realidade de um mundo invisível antes mesmo de possuir a experiência direta desse mundo. Crer apenas nesse mundo invisível é estar ainda aquém da misteriosa fronteira, olhando saudosamente para além – saber é ter cruzado a fronteira entre os dois mundos, é saboreá-lo com inefável beatitude. Escusado é repetirmos que o que chamamos saber não é inteligir, entender mentalmente, mas saborear espiritualmente com a alma. Quem não sabe nem crê nesse mundo de suprema realidade é escravo total, mas ignora a sua própria ignorância escravizante, e isto lhe dá uma ilusória segurança – assim como um preso pode sentir-se seguro por detrás das grades de seu cárcere, se nunca viu outra coisa e considera a cadeia como o seu habitat natural e necessário.
 
Quem crê na realidade invisível mas ainda não tem experiência direta da mesma, está a caminho da libertação, e, mais dia menos dia, será liberto, suposto que não considere a sua crença como o termo final da jornada, e sim como um estágio intermediário que deva ser ultrapassado. Somente o homem que ultrapassou tanto o descrer como o crer, a treva total da ignorância e a penumbra dúbia da crença – esse é plenamente livre, porque a verdade o libertou da inverdade e da semi-verdade. Este livro trata dessa libertação total do homem, da superação da descrença e da crença, da ignorância noturna e da semi-ignorância matutina, rumo a pleni- luz da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. O descrente é um profano da má vontade, o crente é um profano da boa vontade – somente o sapiente é que deixou de ser um profano e se tornou um iniciado. O iniciado, porém não é um “finalizado”, um auto-realizado; é um homem que fez o “início”, que abandonou o zigue-zague das suas velhas oscilações de dúvidas e erros e pôs o pé na linha reta da verdade. E essa “iniciação” na verdade lhe dá profunda segurança e tranquilidade, mesmo longe do termo final da sua jornada ascensional. O principal não é ter atingido a meta – o principal é estar no caminho certo e ter certeza desta verdade. A certeza da direção verdadeira nos dá tranquilidade – a distância da meta mescla de certa tristeza essa tranquilidade; mas essa sagrada tristeza – “bem- aventurados os tristes” – não impede a felicidade e se converterá, um dia, em jubilosa alegria, na proporção que o homem passe da penumbra da crença para a luz de uma sapiência crescente, do saber inicial para um saber mais profundo e vasto; porquanto, há muitos graus mesmo na zona do saber experiencial. * * * Nesta altura, surge a momentosa pergunta: como pode o homem ter plena certeza de que está no caminho verdadeiro, na linha reta da iniciação espiritual? E se tudo aquilo não passasse de simples emocionalismo, ou até de orgulhosa presunção?... 
 
Respondemos que, para o verdadeiro iniciado, há uma certeza imediata, íntima, que não exige provas externas; o homem que teve o seu encontro com Deus tem plena certeza desse encontro, embora não o possa provar aos outros nem ao seu próprio ego humano. A certeza não vem das provas; as provas são apenas uma tentativa, assaz pueril, de querer justificar a certeza espiritual, o que é impossível. Se a certeza íntima dependesse das provas analíticas e silogísticas da inteligência, não haveria verdadeira certeza. Mas a certeza vem duma experiência interna, que não pode ser construída nem destruída por nenhuma demonstração externa. A certeza espiritual está para além de todas as defensivas e ofensivas das provas; habita no baluarte inexpugnável da intuição espiritual, que é a voz de Deus dentro do homem. Quem tenta provar a existência de Deus é ateu, e quem adora um Deus cientificamente demonstrado é idólatra. Nem a realidade de Deus nem a imortalidade da alma podem ser provadas, mas são o resultado de uma experiência Íntima para além de todos os horizontes das operações da inteligência. Entretanto, esse encontro Íntimo com Deus, além de dar certeza imediata ao iniciado, tem também as suas projeções externas, uma vez que o “agir segue ao ser” (agere sequitur esse). 
 
O verdadeiro iniciado em seu íntimo ser revela essa iniciação também no seu externo agir, queira ou não queira. E essas consequências externas servem, geralmente, de teste e contra-prova para os de fora; o mundo nada sabe do nosso ser, só conhece o nosso agir, e do modo desse nosso agir infere algo sobre o nosso ser. Quem se encontrou, de fato, com Deus, na profunda e silenciosa solidão da experiência mística, inicia uma nova vida também na vastidão do seu procedimento ético. O “primeiro mandamento” se revela espontaneamente no “segundo mandamento”. A mística do verdadeiro iniciado transborda, espontânea e irresistivelmente, na sua ética cotidiana; aquela se realiza na profunda vertical do eterno e do infinito, mas esta se revela na vasta horizontal de todos os temporários e finitos. A experiência da paternidade de Deus produz necessariamente a fraternidade dos homens. O homem iniciado entra em cheio no espírito do Sermão da Montanha, que não é senão o reflexo ético da experiência mística. Uma vez que o homem atingiu a altura do seu auto-conhecimento, sente maior prazer em dar e servir do que em receber e ser servido. E, como ultrapassou a velha ilusão de se identificar com o seu ego corporal, mental ou emocional, já não crê numa morte real do seu ser, não se apega freneticamente a objetos materiais, hão se sente ofendido, desprezado, preterido; não se julga infeliz pelo fato de sofrer, nem feliz por gozar. 
 
Esse homem perdeu também o senso da virtuosidade ou heroicidade; acha natural e evidente todo o bem que faz aos outros, desde que se tornou realmente bom. Quem é bom no seu íntimo ser não se julga merecedor de algum prêmio pelo fato de fazer o bem a seus semelhantes. Esse homem ultrapassou não só o inferno dos seus vícios, mas também o céu das suas virtudes. Não evita o mal por medo de castigo nem pratica o bem com esperança de prêmio; ele é incondicionalmente bom, e, como ser-bom é ser-feliz, ele é profundamente feliz. Esse ser-bom e ser-feliz envolve-o numa como aura de leveza e luminosidade, que contagia beneficamente todos os homens suscetíveis dessas imponderáveis irradiações e vale mais para a redenção da humanidade do que todas as palavras de outros homens. Ética não pode ser profissão. A verdadeira ética é um transbordamento espontâneo da mística. O homem realmente místico não necessita de professar ética deliberadamente; o próprio fato de ele ser bom pelo contato com Deus faz dele um poderoso foco de irradiação ética, mesmo inconscientemente. 
 
Ninguém pode ser genuinamente bom sem fazer bem aos outros. De maneira que a libertação do homem individual pelo conhecimento da verdade sobre si mesmo, e subsequente vivência dessa verdade, é o único meio seguro para redimir a humanidade de todos os males que a afligem. Quando o homem descobre dentro de si mesmo essa fonte de segurança pode dispensar todas as seguranças externas. “Conhecereis a Verdade – e a Verdade vos libertará.” “Homem, conhece-te a ti mesmo!”


Huberto rohden, A Grande Libertação
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