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domingo, 9 de setembro de 2018

A FILOSOFIA PERENE


Derrame de lucidez 
por Aldous Huxley

... O fim último do homem, a razão final da existência humana é o conhecimento unitivo do Fundamento Divino — o conhecimento que só pode vir para os que estão preparados para "morrer para o seu eu" e, desse modo, dar lugar, por assim dizer, a Deus. De cada geração de homens e mulheres pouquíssimos realizarão o objetivo final da existência humana; mas a oportunidade de alcançar o conhecimento unitivo, de um modo ou de outro, será oferecida continuamente, até que todos os seres sencientes se deem conta de Quem realmente são.

... O fundamento no qual a psique múltipla e presa ao tempo está enraizada é uma percepção simples e intemporal. Se nos tornarmos puros de coração e pobres de espírito poderemos descobrir essa percepção e identificar-nos com ela. No espírito não somente temos, mas somos o conhecimento unitivo do Fundamento Divino... É na Divindade que as coisas, as vidas e as mentes têm o seu ser; é por meio de Deus que elas têm o seu tornar-se — um tornar-se cuja meta e propósito consistem em retornar à eternidade do Fundamento.

... Só se obtém o conhecimento direto do Fundamento pela união e a união só pode ser alcançada pelo aniquilamento do ego voltado para si mesmo, que é a barreira que separa o "tu" do "Aquilo".

... O fim último do homem, o propósito de sua existência, é amar, conhecer a Divindade imanente e transcendente e unir-se à ela. Essa identificação do eu com o não-eu espiritual só se obtém "morrendo" para a personalidade e vivendo para o espírito.

... A vontade é livre, e temos a liberdade de identificar o nosso ser, exclusivamente com a nossa persona e seu interesses, havidos por independentes do Espírito que o habita e da Divindade transcendente (e nesse caso seremos condenados passiva ou ativamente demoníacos), ou exclusivamente com o divino dentro e fora de nós (e nesse caso seremos santos), ou, finalmente, com o eu num momento ou num contexto e com o não-eu espiritual em outros momentos e contextos (e nesse caso seremos cidadãos comuns, tão teocêntricos que não poderemos perder-nos totalmente, e tão egocêntricos que não poderemos atingir a iluminação e a libertação total). Como os desejos humanos jamais poderão ser satisfeitos a não ser pelo conhecimento unitivo de Deus, e como o corpo-mente é capaz de enorme variedade de experiências, estamos livres para identificar-nos com um número quase infinito de objetos possíveis — com os prazeres da glutonaria, por exemplo, ou da intemperança, ou da sensualidade; com o dinheiro, o poder ou a fama; com a família, considerada como propriedade ou, na realidade, como extensão ou projeção da nossa própria persona; com nossos bens, passatempos, coleções; com nossos talentos artísticos ou científicos; com algum ramo favorito de conhecimento, com algum fascinante "assunto especial"; com nossas profissões, partidos políticos, igrejas; com nossas dores e enfermidades; com nossas lembranças de êxito ou malogro, nossas esperanças, temores e planos de futuro; e, por fim, com a Realidade Eterna, dentro da qual e pela qual todo o resto tem o seu ser.

... O santo é o homem que sabe que todo o momento da nossa vida é um momento de crise; pois a todo momento somos chamados a tomar uma decisão da maior importância — a escolher entre o caminho que conduz à morte e às trevas espirituais, e o caminho que conduz à luz e à vida; entre interesses exclusivamente temporais e a ordem eterna; entre a nossa vontade pessoal, ou a vontade de alguma projeção da nossa personalidade, e a vontade de Deus... Aqui, a meta, em primeiro lugar, é trazer seres humanos a um estado em que, por já não existirem obstáculos capazes de eclipsar Deus entre eles e a Realidade, estão aptos a ter sempre a consciência do seu Fundamento Divino e do de todos os outros seres; em segundo lugar, como meio para esse fim, a meta é enfrentar todas as circunstâncias do viver diário, até as mais triviais, sem maldade, sem cupidez, sem auto-afirmação nem ignorância voluntária, mas coerentemente, com amor e compreensão. Porque os seus objetivos não são limitados, porque, para quem ama a Deus, cada momento é um momento de crise, o treinamento espiritual é incomparavelmente mais difícil e minucioso do que o militar. Existem muitos bons soldados, mas poucos santos.

... 'Podemos sempre alcançar os seus cumes'. Para aqueles dentre nós que ainda chafurdam no lodo inferior, a expressão soa um tanto irônica. Entretanto, até a luz do mais distante conhecimento das alturas e da plenitude, é possível compreender o que quer dizer o seu autor. Descobrir o Reino de Deus exclusivamente dentro de nós é mais fácil do que descobri-lo, não somente ali, mas também no mundo exterior de mentes, coisas e criaturas vivas. É mais fácil porque as alturas interiores se revelam aos que estão prontos para excluir do seu campo de ação tudo o que está no exterior. E se bem possa ser a exclusão um processo penoso e mortificante, subsiste o fato de que é menos árduo do que o processo de inclusão, pelo qual chegamos a conhecer a plenitude bem como os cimos da vida espiritual. Onde existe uma concentração exclusiva nos cimos interiores, evitam-se as tentações e distrações e há uma negação e uma supressão gerais. Mas quando acalentamos a esperança de conhecer Deus de maneira inclusiva — compreender o Fundamento Divino assim no mundo como na alma —, não devemos evitar as tentações e distrações, senão nos submetermos a elas e usá-las à guisa de oportunidade de progresso; não se devem suprimir as atividades voltadas para fora, senão transformá-las, de modo que se tornem sacramentais. A mortificação faz-se mais penetrante e mais sutil; há necessidade de uma consciência vigilante e, nos níveis do pensamento, do sentimento e do comportamento, necessidade do contínuo exercício de alguma coisa semelhante ao tato e o bom gosto do artista.
 
... O mundo habitado por pessoas comuns, bem-comportadas, não-regeneradas, é sobretudo apagado (tão apagado que os habitantes precisam distrair a mente do fato de se darem conta disso por toda sorte de 'divertimentos' artificiais), às vezes breve e intensamente aprazível de vez em quando, ou muito amiúde desagradável e até torturante. Para os que mereceram o mundo depois de se tornarem aptos a ver Deus dentro dele, bem como dentro das próprias almas, ele assume um aspecto muito diverso."

... Só podemos amar o que conhecemos, e nunca podemos conhecer completamente o que não amamos. O amor é um modo de conhecer, e quando é suficientemente desinteressado e intenso, o conhecimento torna-se conhecimento unitivo e, desse modo, adquire a qualidade da infalibilidade. Onde não há amor desinteressado (ou, mais sucintamente, onde não há caridade), só há amor de si mesmo e, consequentemente, mero conhecimento parcial e distorcido assim do eu como do mundo das coisas, das vidas, das mentes e do espírito fora do eu. O homem alimentado de lascívia "escraviza as ordens do Céu" — isto é, subordina as leis da Natureza e o espírito aos seus próprios anseios. O resultado é que ele "não sente" e, por conseguinte, faz-se incapaz de conhecimento. Sua ignorância, afinal de contas, é voluntária; não pode ver porque "não quer ver". Essa ignorância voluntária tem, inevitavelmente, a sua recompensa negativa... às vezes de um modo espetacular, quando o homem cego pelo eu, cai na armadilha montada por sua própria ambição, ou sua possessividade, ou sua vaidade petulante; às vezes, de modo menos óbvio, como nos casos em que o poder, a prosperidade e a reputação duram até o fim, porém, à custa de uma impermeabilidade cada vez maior à graça e à iluminação, uma incapacidade cada vez mais completa de escapar, agora ou daqui por diante, da prisão sufocante da persona e do estado de separação.
 
... A forma mais alta do amor de Deus é uma intuição espiritual imediata, pela qual 'o conhecedor, o conhecido e o conhecimento se tornam um'. Os meios para chegar a esse supremo-conhecimento do Espírito pelo espírito, assim como seus primeiros estágios... consistem em atos da vontade dirigidos para a negação da persona em pensamento, sentimento e ação, para a ausência de desejo e o desapego ou (empregando o termo cristão correspondente) a 'santa indiferença', para a aceitação prazenteira da tribulação sem piedade de si mesmo e sem a ideia de retribuir o mal com o mal e, finalmente, para a atenção vigilante e endereçada a um fim único em relação à Divindade que é, a um tempo, transcendente e, porque transcendente, imanente em todas as alma.

... 'Que o nosso reino se vá' é o corolário necessário e inevitável do 'Venha a nós o Vosso reino'. Pois quanto mais houver do eu, tanto menos haverá de Deus. A plenitude eterna e divina da vida só pode ser alcançada pelos que perderam deliberadamente a vida parcial e separada dos anseios e dos interesses pessoais, do pensamento, dos sentimentos, dos desejos e dos atos egocêntricos. A mortificação ou a morte deliberada para o eu nos é inculcada com intransigente firmeza pelos escritos canônicos do cristianismo, do hinduísmo, do budismo e da maioria das outras religiões maiores ou menores do mundo, e por todos os santos e reformadores espirituais teocêntricos que viveram e expuseram os princípios da filosofia perene. Mas esse 'auto-aniquilamento' nunca é considerado (pelo menos por alguém que conheça aquilo que está falando) como um fim em si mesmo. Possui apenas valor instrumental, como meio indispensável para fazer outra coisa. Segundo as palavras de alguém que já tivemos ocasião de citar com frequência em capítulos anteriores, é necessário para todos nós 'aprender a natureza e o valor verdadeiros de todas as renúncias do eu e de todas as mortificações'.

... É perdendo a vida egocêntrica que salvamos a vida até então latente e não descoberta que, na parte espiritual do nosso ser, partilhamos com o Fundamento Divino. A posse dessa vida recém-encontrada, 'mais abundante' do que a outra, e de uma espécie diferente e mais elevada, é a libertação no eterno, e a libertação é a beatitude... A mortificação é dolorosa, mas essa dor constitui uma das primeiras condições da bem-aventurança... Só podemos conhecer a Natureza criada em toda a sua beleza essencialmente sagrada se desaprendermos, primeiro, os expedientes sujos da humanidade adulta. Visto através dos óculos coloridos de esterco do interesse pessoal, o universo se parece singularmente com um monte de estrume; e como, à força de haverem sido usados longamente, os óculos grudaram nos glóbulos oculares, o processo de "limpar as portas da percepção", muitas vezes, pelo menos nas primeiras fases da vida espiritual, é dolorosamente parecido com uma operação cirúrgica. Mais tarde, com efeito, até o aniquilamento do eu pode ser inundado pela alegria do Espírito.
 
... Os bens do intelecto, as emoções e a imaginação são bens verdadeiros; mas não são o bem final e, quando os tratamos como fins em si mesmos, caímos na idolatria. Não basta a mortificação da vontade, do desejo e da ação; é de mister que haja também a mortificação nos campos do conhecimento, do pensamento, do sentimento e da imaginação.
 
... Feliz é o homem que, apagando continuamente todas as imagens, pela introversão e pela elevação da mente a Deus, se acaba esquecendo de todos esses obstáculos e deixa-os para trás. Pois somente por esses meios opera interiormente, com suas afeições e seu intelecto nus, puros e simples, em relação ao objeto mais puro e mais simples, Deus. Diligencia, pois, de forma que todo o teu exercício a respeito de Deus dentro de ti dependa, inteira e unicamente, desse intelecto, dessa afeição e dessa vontade nuas. Pois, com efeito, o exercício não pode ser levado a cabo por nenhum órgão do corpo, nem pelos sentidos externos, mas tão-só pelo que constitui a essência do homem — a compreensão e o amor. Se, portanto, desejares uma escada segura e um caminho curto para chegar ao termo da verdadeira bem-aventurança, então, com a mente atenta, deseja com ardor e aspira ao permanente anseio do coração e à pureza da mente. Acrescenta a isso a calma constante e a tranquilidade dos sentidos, e um recolhimento das afeições do coração, fixando-os de contínuo lá em cima. Pois o que assim sobe e entra vai acima e além de si mesmo, sobe verdadeiramente para Deus. A mente deve subir, então, acima de si mesmo e dizer: 'Aquele de que preciso acima de tudo está acima de tudo o que conheço'. E, assim, carregado para dentro das trevas da mente, juntando nesse bem onissuficiente, ele aprende a ficar em casa e, com toda sua afeição, apega-se ao bem interior supremo e nele se fixa habitualmente. Continua assim, até te tornares imutável e chegares à verdadeira vida, que é o próprio Deus, perpetuamente, sem nenhuma vicissitude de espaço ou tempo, repousando na mansão interior, secreta e silenciosa, da divindade.
 
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