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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

ANSEIO UNIVERSAL 
DE LIBERTAÇÃO



Vai pela humanidade dos nossos dias um anseio universal de libertação. Essa ânsia redentora é provocada por uma consciência profunda de irredenção*. Parece que a função peculiar da inteligência é fazer sentir ao homem que nenhum conforto material, por mais refinado e potencializado, pode libertar o homem desse doloroso senso de inquietude e insatisfação que caracteriza, sobretudo, o cidadão da Era Atômica, Quanto mais o homem se afasta, pelo poder da inteligência, do seu centro humano, invadindo os espaços externos, tanto mais sente ele, consciente ou inconscientemente, a necessidade de voltar a si mesmo, pela conquista do espaço interno, pelo descobrimento do seu verdadeiro Eu. O progressivo centrifuguismo* produzido pelo ego intelectual exige um correspondente centripetismo*, que só o Eu espiritual pode realizar. 
 
Quanto mais liberto o homem se julga pelo conforto material, que a ciência lhe proporciona, tanto mais escravizado se sente pela falta de consciência do seu verdadeiro destino. E essa consciência de irredenção desperta na alma humana um crescente anseio de redenção. A fim de diminuir essa consciência de vácuo e insatisfação, procura o homem profano toda a espécie de satisfações – mas... satisfações não dão satisfação. Bens de fortuna, prazeres sensuais, poder político, ciência, arte, diversões sociais – pode tudo isto atuar como lenitivo temporário, narcótico e anestésico artificial, mas a raiz do mal continua, por mais que os sintomas da doença sejam camuflados, de tempos a tempos. Por isto, os mais sensatos dentre nós procuram ir além desse charlatanismo barato de cura de sintomas mórbidos e tentam sanar o mal pela raiz. 
 
O globo está coberto de sociedades iniciáticas, místicas, esotéricas, espiritualistas, que prometem a seus adeptos definitiva quietação metafísica e plena integração do indivíduo nos mistérios do Cosmos. As classes mais simples e os crentes unilaterais, por outro lado, se contentam com a prática de cerimônias rituais e sacramentais, sob a direção de seus respectivos chefes. O homem da Era Atômica que passou por duas guerras de extermínio não pode mais crer na força redentora da nossa cultura e civilização, como muitos otimistas do século 19 ainda acreditavam. O homem de hoje perdeu a fé na ciência e técnica como fatores de libertação.
 
Ciência, técnica, política, progresso, civilização, humanismo, ritualismo, nacionalismo, e outras pretensas panaceias de antanho, sofreram tremendo colapso; está provado que nada disto nos pode libertar, porque tudo isto falhou e afogou a humanidade num mar de sangue e de ódio. Nunca se sentiu o homem tão frustrado e cético de si mesmo como em nossos dias. Não pode o lúcifer do nosso ego redimir-nos dos resultados do nosso egoísmo. E a perspectiva de uma nova guerra mundial, com armas nucleares, apaga na alma do homem moderno a derradeira centelha de otimismo e de confiança em si mesmo. A humanidade anseia pela redenção. Donde virá o redentor? De fora? Através de dogmas, ritos, teologias? Mas esses provocaram as guerras! De dentro? Através da inteligência humana? Mas foi precisamente esta que nos desgraçou, criando engenhos bélicos de destruição universal: Não nos Testa senão ultrapassarmos ritualismos e cientificismos e descobrirmos em nós mesmos o “ponto de Arquimedes” em que apoiar a alavanca redentora. Esse fulcro não pode ser o nosso ego, mas tem de ser algo mais profundo e sólido. 
 
O homem pensante e sinceramente espiritual se contenta cada vez menos com magia mental e técnicas rituais. Crê tão pouco em alo-redenção ritual como em ego-redenção mental, mas sabe que há uma auto-redenção espiritual, como aparece na Carta Magna do Sermão da Montanha. Até ao fim da Idade Média – e muitos ainda não saíram dela – vivia o homem satisfeito com a sua fé ingênua em ritualismos eclesiásticos, que, segundo seus chefes espirituais afirmavam, conferiam redenção automática e fácil. Discordar ou duvidar da eficiência redentora de dogmas e sacramentos era pecado mortal contra a fé, e a dissidência pública dessas práticas acarretava excomunhão na vida presente e eterna condenação no mundo futuro. Com o advento do protestantismo, no século 16, os ritos eclesiásticos, que eram monopólio do clero, foram substituídos pela fé no sangue redentor de Jesus Cristo, e a infalibilidade do Papa cedeu lugar à infalibilidade da Bíblia – o conceito da alo-redenção assumiu novo aspecto, mas continuou em pé. Para que essa alo-redenção exercesse impacto sobre a vida, devia o homem fechar os olhos e crer cegamente em sua eficácia. 
 
Acontece, porém, que a humanidade-elite do século vinte não quer crer de olhos fechados, mas saber de olhos abertos. Os melhores dentre nós são praticamente “inconvertíveis”; não, voltarão atrás, esperando libertação por ritos externos, nem confiam na magia mental de certas técnicas científicas. E continua a agonia dos irredentos... Nem mesmo a perspectiva de uma futura reencarnação, em melhores condições, tranquiliza o homem de experiência mais profunda. Ele quer saber como possa ser liberto aqui e agora. Não crê que a morte lhe possa dar o que a vida não lhe deu. Uma voz íntima lhe diz que nem o nascer nem o morrer nem o simples viver ou sobreviver o podem redimir, mas que é necessária uma vivência mais profunda e uma experiência mais alta do que esses fatores lhe possam garantir. Numa intensa vivência experiencial estaria a sua redenção – mas como conseguir essa vivência?... Onde está a chave do mistério, fora dele ou dentro dele?... Pode o homem ser liberto ab extra – ou deve ele redimir-se ab intra?... Existe no homem algum elemento redentor?... Não é ele todo mau e pecador?... Está tomando incremento progressivo, por toda a parte, a ideologia libertadora que ultrapassa todas as modalidades externas, tanto do automatismo legal da velha sinagoga de Israel, como também a magia ritual das igrejas cristãs, e mesmo as técnicas iniciáticas das sociedades espiritualistas modernas. A redenção vem de dentro do próprio homem, mas não desse homem-ego, que é precisamente o autor da escravidão, e sim do homem-Eu, do “espirito de Deus que habita no homem”, no dizer do apóstolo Paulo. O homem-Cristo redime o homem-Satan, se este lhe abrir as portas. Se o “grão de trigo” do homem-ego morrer, então a vida do homem-Eu latente, nessa semente “produzirá muito fruto”. Do contrário, “ficará estéril”. Auto-redenção não é ego-redenção. 
 
O homem é remido por um fator não idêntico a seu ego humano, mas esse elemento redentor não está fora do homem, está dentro dele, é o seu verdadeiro centro, o seu divino Lógos ou Verbo que nele encarnou e nele habita, embora em estado ainda latente. Despertar em si essa vida divina dormente – isto é redenção, salvação, auto- realização. O ego é um objeto que o homem tem – o Eu é o próprio sujeito que o homem é. O que eu sou isto me redime daquilo que eu tenho. O meu ser é luz – “vós sois a luz do mundo” – o meu ter é treva – “a luz brilha nas trevas, e as trevas não a prenderam”; as trevas do meu ego humano não conseguem extinguir a luz do meu Eu divino – e é este Eu divino em mim que me redime de todas as irredenções do ego humano.
 
O Sermão da Montanha, esse documento máximo de realização existencial, é o mais completo programa de auto-redenção. O homem que realizar em sua vida esse programa está plenamente liberto. 
 
 

Huberto Rohden, A Grande Libertação 

https://pt.slideshare.net

 

NOTAS

* centrifuguismo: movimento que afasta do centro

* centripetismo: movimento que atrai para o centro

* irredenção: não libertação

 

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