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terça-feira, 31 de julho de 2018

O LIVRO DA VIDA


Primeira Parte

A história da humanidade está em você: a vasta experiência, os medos profundamente arraigados, as ansiedades, a dor, o prazer e todas as crenças que o homem acumulou através dos milênios. Você é esse livro. Ele não foi publicado por nenhum editor; não está à venda. Inútil ir a algum analista, porque o livro dele é o mesmo que o seu. Sem ler esse livro cuidadosa, paciente, hesitantemente, você nunca será capaz de transformar a sociedade em que vivemos, a sociedade que é corrupta, imoral. Existe muita pobreza, injustiça, e assim por diante. Qualquer pessoa séria estaria preocupada com o estado das coisas no mundo atual, com todo o caos a corrupção, guerra – o maior de todos os crimes é a guerra. Para produzir uma mudança radical em nossa sociedade e em sua estrutura, a pessoa tem que ser capaz de ler esse livro que é ela própria; e a sociedade em que vivemos foi criada por nós, cada um de nós, por nossos pais, avós e assim por diante. Todos os seres humanos criaram essa sociedade e, enquanto a sociedade não for transformada, haverá mais corrupção, mais guerra e destruição da mente humana. Assim, para ler esse livro que é a própria pessoa, é preciso aprender a arte de escutar o que o livro está dizendo. Escutar implicar não interpretar. Apenas observar, como você observa uma nuvem. Não se pode fazer nada a respeito da nuvem ou das folhas da palmeira balançando ao vento, ou em relação à beleza do pôr-do-sol; não se pode alterá-los. Da mesma forma, é preciso aprender a arte de escutar o que o livro está dizendo. O livro é você; ele revelará tudo.

Há outra arte, a da observação, a arte de ver. Quando você lê o livro que é você mesmo, não existem você e o livro. Não existe o leitor e o livro separado. O livro é você.

Há ainda outra arte, a arte de aprender. Os computadores podem aprender; eles podem ser programados e repetirão aquilo que lhes foi ordenado. Primeiro nós experimentamos, acumulamos conhecimentos, e os armazenamos no cérebro; então o pensamento nasce sob a forma de memória e segue-se a ação. Dessa ação você aprende. Assim, aprender é acumular mais conhecimento. Isso é o que a mente que está atenta, desperta, está fazendo todo o tempo, como um computador. Experiência, conhecimento, memória, pensamento, ação – eis o que estamos fazendo todo o tempo, o que chamamos “aprender” – aprender com a experiência. Essa tem sido a história do homem – constante desafio e resposta a esse desafio. O livro é todo o conhecimento da humanidade, que é você.

Sei que vocês provavelmente são muito cultos, muito educados, mas estou expondo tudo isso em uma linguagem muito, muito simples. Entretanto, a palavra não é a coisa. Por favor, tenham isso em mente todo o tempo: a palavra não é a coisa. O símbolo nunca é o real. Desse modo, como eu disse, existe a arte de ver, a arte de escutar e a arte de aprender. O homem nunca é livre do conhecido; por isso, nosso aprendizado torna-se mecânico. A arte de aprender implica algo totalmente diferente. Aprender significa investigar os limites do conhecimento e mover-se. Agora, com esses três processos – escutar, observar, aprender – vamos juntos ler o livro da vida. Você está lendo o livro junto comigo; não estou lendo o seu livro. Estamos lendo o livro humano que é você, o orador e o resto da humanidade. Por favor, dê um pouco de atenção a isso. Se sabemos como ler o livro que somos nós mesmos, todos os conflitos e dores, chegam a um fim. Somente essa é a mente religiosa, não a que acredita; não a que executa todos os rituais, mas a que é livre. Tendo lido completamente o livro, é apenas essa mente que recebe a bênção da verdade.

Qual o primeiro capítulo nesse livro? É o seu livro, qual é o conteúdo desse capítulo? À parte a existência física, o organismo com todos os males do corpo: a doença, a preguiça, a morosidade, a falta de alimento apropriado, de nutrição conveniente – à parte tudo isso, qual é o primeiro movimento? Você pode ter olhado para o seu rosto, penteado o cabelo, empoado a face e tudo o mais, mas nunca olhou para dentro. Se olhar para dentro de si mesmo, você não se descobre um ser humano de segunda mão? Pode ser bastante desagradável considerar-se um ser humano de segunda mão. Mas estamos cheios de conhecimento de outras pessoas – o que alguém ou algum mestre ou guru disse, o que Buda disse, o que o Cristo disse, e assim por diante. Estamos cheios disso. Da mesma forma, se você foi à escola, faculdade ou universidade, lá também lhe foi dito o que fazer, o que pensar. Assim, se compreender que é um ente de segunda mão, você poderá pôr isso de lado e olhar.

Acompanhe-me, por gentileza: a primeira observação é que vivemos em contradição, que não há ordem em nós. Ordem não é programação. É colocar tudo no lugar certo. Mas ordem implica algo muito maior que a disciplina mecânica de um hábito particular, ou de uma função normal. Desta forma, a pessoa descobre nesse livro, no primeiro capítulo, que vivemos uma vida extraordinariamente confusa, desordenada – querendo uma coisa e negando que a queremos, dizendo uma coisa e fazendo outra, pensando uma coisa e fazendo outra. Assim, há contradição constante. Onde há contradição, tem de haver conflito. Você está acompanhando o livro que é você mesmo vivendo de uma maneira desordenada, em perpétuo conflito. Esse conflito alastrou-se como ambição, realização, identificação com uma pessoa, um país, uma ideia, sem nunca viver com o real. Assim, vivemos em desordem – politicamente, religiosamente, em nossa vida familiar.

Temos de descobrir o que é ordem. O livro irá lhe contar, se você souber como lê-lo. Ele diz que você vive em desordem. Acompanhe-o, vire a próxima página. Então você descobrirá o que significa viver em desordem. Se uma pessoa compreende a natureza da desordem, não intelectual, ou verbalmente, mas de fato, o livro está dizendo: não traduza, não transforme isso num conceito intelectual, mas leia-o apropriadamente. Quando você o lê, ele diz que suas contradições existem, e elas só irão terminar se você compreender a natureza da contradição. Contradição existe quando há divisão como hindus e muçulmanos, judeus e árabes, comunistas e não-comunistas, esse constante processo divisório entre os vários tipos de Budistas, os vários tipos de Hindus, Cristãos e assim por diante. Onde há divisão, tem de haver conflito, que é desordem. Quando você compreende a natureza da desordem, dessa compreensão, das profundezas dessa compreensão da natureza da desordem, vem, naturalmente, ordem.

Ordem é como uma flor desabrochando naturalmente, e essa ordem, essa flor, nunca fenece. Sempre há ordem na própria vida quando se lê realmente o livro, que diz: onde há divisão, tem de haver conflito.


Krishnamurti 
http://nossaluzinterior.blogspot.com

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