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terça-feira, 10 de julho de 2018

SOBRE 
O CRIME E O CASTIGO


Então, um dos juízes da cidade avançou e disse:
Fala-nos do Crime e do Castigo.
 
E ele respondeu, dizendo:
 
É quando o vosso espírito vagueia pelo vento 
que vós, solitários e indefesos,
fazeis mal aos outros e também a vós mesmos.
E pelo mal que fazeis devereis bater 
à porta dos abençoados e esperar.
 
O vosso eu interior é como o oceano;
Permanece para sempre imaculado.
E, tal como o etéreo, só ergue os seres alados.
O vosso eu interior é como o sol;
Não conhece os esconderijos da toupeira 
nem procura as tocas da serpente.
 
Mas o vosso eu interior 
não habita sozinho dentro de vós.
Muito em vós ainda é humano, e muito não o é.
Mas um pigmeu disforme 
que caminha sonâmbulo no nevoeiro 
à procura do seu próprio despertar.
 
E é do homem em vós que agora irei falar.
Pois é ele e não o vosso eu interior, 
nem o pigmeu no nevoeiro que conhece 
o crime e o castigo do crime.
 
Muitas vezes vos ouvi falar 
daquele que comete um crime 
como se não fosse um de vós 
mas um intruso no vosso mundo.
 
Mas digo-vos que, 
tal como os santos e os justos 
não se podem erguer mais
alto do que o mais alto que existe 
em cada um de vós, 
também os maus e os fracos 
 não podem cair mais baixo 
do que o mais baixo que existe em vós.
 
E tal como uma simples folha 
só amarelece em conjunto com toda a árvore,
Também aquele que comete um crime 
não o pode fazer sem a anuência
secreta de todos vós.
 
Como numa procissão, caminhais juntos 
em direção ao vosso eu interior.
Vós sois o caminho e os caminhantes
e quando um de vós cai, 
cai por aqueles que vêm atrás, 
para os avisar da pedra 
que encontraram no caminho.
E cai por aqueles que vão à sua frente, 
que, embora mais rápidos e seguros,
não estão livres de tropeçarem na mesma pedra.
 
E notai que, 
embora a palavra vos pese no coração:
O assassinado não está isento de responsabilidade pelo seu próprio assassínio, 
e o roubado não está isento de culpas
 por o ter sido.
 
O justo não está inocente dos feitos do malvado, 
e o que tem as mãos limpas
não está limpo dos atos do culpado.
Sim, o culpado é por vezes vítima do ofendido.
E ainda mais vezes é o portador 
do fardo dos inocentes e retos.
 
Não podeis separar o justo do injusto 
e o bom do mau;
Pois eles andam juntos ante a luz do sol, 
tal como juntos são 
tecidos os fios brancos e negros
E quando o fio negro quebra, 
o tecelão examina todo o tecido 
e também todo o tear.
 
Se algum de vós trouxer a julgamento 
a mulher infiel, que também pese 
o coração do marido e meça a sua alma.
 
E que aquele que quiser flagelar o ofensor 
olhe para o espírito do ofendido.
E se algum de vós punir em nome do que é justo 
e cortar com o machado a árvore do mal,
 deixe então que se vejam as raízes;
E encontrará as raízes do bom e do mau, 
do que dá frutos e do que não dá,
entrelaçadas no coração silencioso da terra.
 
E vós, juízes, que quereis ser justos, 
que condenação ireis dar àquele que,
embora honesto de corpo, 
é um ladrão de espírito?
Que castigo ireis dar àquele 
que flagela a carne e também flagela o espírito?
Como procedereis com aquele 
que nos seus atos é falso e opressor, 
mas que, no entanto, 
é também enganado e oprimido?
E como ireis punir aqueles cujos remorsos 
são maiores do que os crimes que cometeram?
 
Não será o remorso a justiça que é administrada pela própria lei que quereis servir?
No entanto, não podereis impor 
o remorso ao inocente, nem arrancá-lo 
do coração do culpado.
 
Subitamente, à noite, ele convocará os homens 
para que olhem para si próprios.
E vós, que deveis entender a justiça, 
como o podereis fazer a menos que
olheis para os fatos à plena luz?
Só assim sabereis que o ereto e o caído
 são um único homem no crepúsculo
entre a noite da sua pequenez e o dia 
da sua espiritualidade, 
e que a pedra mãe do templo 
não é mais alta que a mais funda 
pedra dos seus alicerces.


Gibran Kahlil Gibran
 http://www.geocities.ws
O Poeta do Amor

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