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domingo, 8 de julho de 2018

A INCAPACIDADE DE SENTIR 
COM INTENSIDADE E FORÇA


Segunda Parte


Que mal há no desejo? Todos o temos, o sentimos, muito intensamente ou de maneira vaga; todos sentem desejo, de uma ou de outra espécie. Que mal há nele? Por que aceitamos tão facilmente subjugar, destruir, perverter, reprimir o desejo? Porque, evidentemente, o desejo traz conflito — o desejo de riqueza, posição, fama, etc. E alcançar fama, adquirir posses, desejar com muita força, implica conflito, perturbação; e não desejamos ser perturbados. E só isso que procuramos essencialmente, profundamente — não ser perturbados. E quando nos vemos perturbados tentamos encontrar uma saída dessa situação e voltar a instalar-nos num estado reconfortante, onde nada nos venha perturbar.

Assim, o desejo é olhado por nós como uma perturbação. Reparemos nisto, por favor. Estamos a apontar fatos psicológicos — não se trata de uma questão de aceitar ou não aceitar, de concordar ou discordar. São fatos, e não opiniões minhas. O desejo torna-se assim uma coisa que é preciso controlar, reprimir; e, portanto, esforçamo-nos nesse sentido — custe o que custar, não vamos deixar-nos perturbar, e tudo o que possa perturbar deve ser reprimido, “sublimado” ou posto de lado.

Como dissemos outro dia e de novo dizemos em cada palestra, o que é importante não é ouvir as palavras, mas escutar realmente. Há grande beleza no escutar. Esta tarde, vimos da janela um pássaro, um alcião. Tinha um bico comprido e penas brilhantes, de cor intensamente azul. Estava a chamar, com o seu canto, e outra ave da mesma espécie, outro alcião, respondia ao longe. Ficar apenas a escutá-lo — sem dizer, “É um alcião. Como é belo!”, ou “Como é feio!”, “Quem me dera que aquela espécie de corvo parasse de grasnar!” — não sei se já alguma vez escutaram com esse estado de espírito. Escutar, simplesmente — quando não há nada a lucrar, quando não há qualquer objetivo utilitário; escutar, quando não se está a tentar alcançar, ou evitar, alguma coisa. Ou olhar o sol poente, aquele esplendor do entardecer, aquele brilho de Venus, aquele pequeno retalho de lua crescente — olhar, apenas, e sentir intensamente tudo isso.

Se escutarmos, de fato, nessa feliz disposição, tranquilamente, sem qualquer tensão, então o próprio ato de escutar é um verdadeiro milagre. Milagre, porque nessa ação, nesse momento, compreendemos tudo o que está contido no ato de escutar, de perceber, de ver; foram eliminadas todas as barreiras, e há espaço, entre nós e o mundo, e aquilo que estamos a escutar. Precisamos de ter esse espaço para observar, ver, escutar; quanto mais amplo, quanto mais profundo ele for, mais beleza e profundidade haverá. E algo de qualidade diferente surge quando há esse espaço entre nós e aquilo que estamos a escutar.

Não estou a ser poético, sentimental ou romântico. Mas, na realidade, não sabemos escutar, escutar simplesmente — escutar a nossa mulher, ou o nosso marido, que está a implicar, a questionar, a zangar-se ou a arreliar-nos. Quando apenas escutamos, compreendemos muito; e os céus abrem-se-nos largamente. Façamos isso, de quando em quando; não o tentemos apenas — façamo-lo, e descobriremos por nós mesmos.

Espero que estejais a escutar dessa maneira. Porque aquilo de que estamos a falar é algo que está além da mera palavra. A palavra não é a coisa. A palavra “paixão” não é paixão. Sentir aquilo que transcende a palavra, e deixar-se “captar” por isso, sem qualquer volição, sem diretiva ou objetivo, escutar aquilo a que se chama desejo, escutar os nossos próprios desejos — e temos tantos, vagos ou intensos — então, quando os escutarmos, veremos o enorme mal que fazemos quando reprimimos o desejo, quando o distorcemos, quando queremos satisfazê-lo, quando queremos fazer alguma coisa em relação a ele, quando temos uma opinião a seu respeito.

A maior parte das pessoas perdeu o sentir apaixonado. Talvez o tenha tido outrora, na juventude — talvez apenas num vago murmúrio — tornar-se rico, alcançar a fama, e viver uma vida burguesa, respeitável... Mas a sociedade — que é o que nós somos — reprime o sentir. E, assim, cada um é levado a ajustar-se àqueles que estão “mortos”, que são “respeitáveis”, que não têm sequer uma centelha de paixão; e passa então a fazer parte deles, perdendo assim o sentir apaixonado.

Para compreender todo este problema do desejo, temos de compreender o esforço. Porque, desde o momento em que vamos para a escola até morrermos, vivemos num constante esforço; a nossa mente, a nossa psique, é um campo de batalha. Nunca há um momento de quietação, de descompressão, de liberdade; estamos sempre a batalhar, a lutar, a esforçar-nos, a adquirir, a evitar, a acumular — é isto a nossa vida! Não estou a descrever uma coisa que não existe. A nossa vida é esforço constante. Não sei se já notastes que quando não fazemos qualquer esforço o que não quer dizer estagnar ou dormir — quando todo o nosso ser está tranquilo, sem esforço, então vemos as coisas com muita clareza e penetração, com vitalidade, energia, paixão.

Fazemos esforço, porque somos impelidos por dois ou mais desejos contrários. Estamos sempre a opor um desejo a outro desejo, o desejo de ter e o desejo de não ter — se temos realmente este problema... Mas se temos um só desejo, não há então problema nenhum. Procuramos satisfazê-lo implacavelmente, lógica ou ilogicamente, com todas as suas consequências — dor, prazer. Mas como em geral somos um pouco civilizados — embora não demais... — temos esses desejos contrários e assim há sempre uma batalha.

Há o preceito religioso que manda viver sem desejo — o padrão, o ideal estabelecido por este ou aquele instrutor, este ou aquele “guru”, por meio de uma constante repetição. Há o padrão implantado na consciência, através de séculos de propaganda, a que chamam “religião”. E há também, por outro lado, o desejo instintivo de cada um, em face das exigências, das pressões, das tensões cotidianas. Há assim contradição entre o padrão religioso e o desejo. E a pessoa tem de reprimir um e aceitar o outro, ou recusar o outro e não abandonar aquele que tem — e tudo isso implica esforço. 

Para mim, todo o ato de “vontade”, todo o ato de desejo — e o desejo é uma reação — tem de trazer consigo esforço e contradição, e implica, portanto, uma mente dividida, dilacerada entre desejos inumeráveis. Por exemplo, vê-se uma determinada coisa, um carro, um belo carro; tomamos contacto com ele por meio dos sentidos, e vem-nos então o desejo de o possuir. Ou podemos ter qualquer outra forma de desejo — mas podemos sempre observar por nós mesmos como o desejo nasce. Quando nasce em nós qualquer desejo, temos também consciência do desejo de o reprimir — desejo este inculcado pela tradição, e que está profundamente enraizado nas pessoas. Mas quando um desejo nasce, temos de dar-lhe atenção, de o compreender, de escutar todos os indícios e sinais. Temos de o escutar — em vez de o negar, de o reprimir, de o pôr de lado ou de fugir-lhe. Não é possível fugir dos desejos. 

Krishnamurti, O despertar da sensibilidade
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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