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terça-feira, 24 de julho de 2018

SOFRIMENTO É MEMÓRIA 
MAIS AUTOPIEDADE


Sobre a indolência, 
o sofrimento,  a ação e  a beleza.

Primeira Parte


As ideias ou teorias não transformam de fato a mente e o coração. Não há persuasão, não há castigo ou recompensa que possa impedir a astúcia da mente e a crueldade do coração. Não há crença ou dogma capaz de dissuadir a mente, fazê-la abandonar o curso que está seguindo, para alcançar aquilo que deseja. E seria lamentável se cada um de nós saísse destas reuniões levando uma taça cheia de cinzas — de meras ideias e palavras, que nenhuma transformação produzem. E a transformação só é possível quando percebemos ou vemos o fato real.

Muito temos discutido, analisado, citado, argumentado pró ou contra; entretanto, continuamos exatamente como éramos: embotados, insuficientes, insensíveis, completamente absorvidos em nossos próprios compromissos e problemas. E não há quantidade de reflexão, de ansiedade ou de temor que possa dissolver nossos problemas. Vou falar a respeito desses problemas, como já falei a respeito do medo, do poder, da posição, e da autoridade. Não nos interessam ideias; propaganda não revela o fato, e vós tendes de compreender o fato. Nem o templo, nem o livro, nem o guru pode ensinar-vos a olhar; mas, vós tendes de olhar-vos, tendes de ser vossa própria luz; e para serdes vossa própria luz, não deveis seguir ninguém. Nenhuma autoridade há quando sois vossa própria luz — não tendes guru, não sois um seguidor. Ao serdes vossa própria luz, sois uma entidade criadora. Mas não há possibilidade de criação se existe qualquer forma de indolência.

A indolência é a essência da autopiedade. Nós somos preguiçosos, indolentes, dados a pensar de maneira negligente, sem exatidão. Nossa mente está tão confusa como nosso coração e igualmente embotada. E, para compreender a indolência — não “como” livrar-se da indolência — cumpre aprender o que ela é.

... É muito mais importante aprender do que simplesmente resolver um problema. Se puderdes aprender a respeito de um problema, tê-lo-eis resolvido. Vamos aprender acerca da indolência, dessa extraordinária indolência de nossa mente; não vamos acumular conhecimentos sobre a indolência, conhecimentos que se tornam puramente verbais. O aprender implica investigação. Mas, para investigar, a mente deve estar livre para descobrir; e não há liberdade, se vos limitais a aquiescer, a concordar ou negar, ou a defender-vos atrás de uma barreira de palavras e conclusões. Essas coisas são distrações que impedem a clareza necessária ao aprender. Notai, pois, que vamos aprender juntos a respeito da indolência. Isso concerne principalmente aos que vivem neste clima, que têm estado sujeitos a várias formas de tirania e autoridade, e que facilmente deslizam para a letargia mental, a indolência, facilmente aceitam atitudes e valores. Assim, impende perceber que, para aprender, necessita-se de liberdade para investigar.

Nós vamos aprender acerca dessa qualidade, dessa coisa chamada “indolência”. Como disse, a essência da indolência é a autopiedade. Vou estender-me em considerações sobre esta asserção, porquanto, se não compreendermos este problema, esta questão da autopiedade, não compreenderemos o problema seguinte, ou seja, o sofrimento. É justo ser indolente, é bom ser indolente — no sentido de não estarmos incessantemente ativos, como formigas, ou sempre a fazer alguma coisa, como um macaco. A mente da maioria de nós está perpetuamente ocupada com alguma coisa: palavras, problemas, ideias, resultados; sempre a tagarelar entre si, nunca inativa, nunca quieta — sempre sob tensão. E a mente que não é indolente, que não é preguiçosa, mas tem aquela placidez e sua essencial suavidade, percebe num clarão o que é verdadeiro. Essa inatividade, essa “indolência”, essa consciência de um lazer infinito, não deve ser confundida com o conforto. A mente que tem lazer é uma mente excepcional, porquanto não está envolvida na rede da ação, não está perenemente a tagarelar entre si ou a respeito de alguma coisa.
 
Há, pois, uma qualidade de lazer, de quietude, um “senso” de indiferença, que é necessário. Mas esse estado de quietude, esse “senso” de ilimitado vazio, em que pode ocorrer um lampejo do real — só é possível quando se compreende não só a indolência do corpo, mas também a indolência com que aceitamos ideias, pensamentos, asserções e conclusões, que se tornam as rotinas que ficamos seguindo, tal como um carro elétrico sobre trilhos. E não sabemos, nem sequer estamos apercebidos dessas rotinas. Isso é indolência: não saberdes, não estardes apercebidos de que vosso pensamento, vosso sentimento e vossas atividades “correm” perpetuamente pelas mesmas “linhas”, pelas mesmas rotinas. O mesmo que, aos vinte e cinco ou trinta anos, pensáveis a respeito de uma coisa, pensais ainda hoje. Não há alteração, não há rompimento: nada novo, nada fresco.

E, quanto à preguiça do corpo, à indolência que a maioria das pessoas tem — essa, todos se sentem capazes de ativar, pelo disciplinamento corporal, pelo forçar, impelir, compelir o corpo. Mas, toda forma de compulsão gera conflito; e a mente em conflito com o corpo não dá energia ao corpo, ao organismo: só cria conflito; e esse conflito não é a “qualidade” geradora da energia necessária para ativar o corpo.

Nessas condições, a disciplina, o controle, o forçar o organismo a submeter-se, a erguer-se do leito, a executar várias coisas para “positivar” sua atividade — tudo isso só cria resistência. E onde há resistência, aí há contradição; e é essa contradição que, incompreendida, gera a indolência. Quem estudou e observou o próprio corpo deve saber quando ele necessita e quando não necessita de repouso. Deve saber que não há necessidade de compelir, forçar, impelir o corpo a fazer determinada coisa; o corpo a fará, natural, espontânea, facilmente. Mas é preciso compreender todo o mecanismo da indolência mental. Se um homem se excede no comer, e é indulgente consigo mesmo a vários respeitos, isso denota um estado de extraordinária lassidão, porque sua mente está adormecida; ele se deixa, simplesmente, levar por tal ou qual apetite, e isso se torna hábito, e esse hábito não é mais do que a “continuidade”, sem nenhuma reflexão, do que foi.

Krishnamurti
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

 

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