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quarta-feira, 25 de julho de 2018

SOFRIMENTO É MEMÓRIA 
MAIS AUTOPIEDADE

Terceira Parte

Não necessitais do tempo. O tempo não é a via da transformação; o tempo nunca produz transformação; o tempo traz a aceitação, o hábito: vós vos acostumais, vos enfastiais, vos tornais embotado, estulto. Mas, para poderdes livrar-vos da “continuidade” da autopiedade, geradora de sofrimento, deveis vê-la incontinenti. E podeis vê-la num instante. Podeis acrescentar-lhe mais particularidades; mas, particularidades não importam, razões nada significam, e não valem as conclusões. A verdade é que sois incapaz de enfrentar o fato — o fato de terdes perdido vosso filho, de não serdes tão inteligente, tão cheio de vitalidade como eu; quando enfrentais esse fato sem autopiedade, estais então livre de mim, já não vos achais num “estado de comparação”.

A mente, pois, se preocupa consigo própria, como o faz a maioria das pessoas. Deveis preocupar-vos com vós mesmos, num certo nível — pois precisais ganhar a vida. Mas a preocupação pessoal num nível mais profundo, no profundo nível psicológico, provoca a inércia, que é indolência. Psicologicamente, interiormente, se vos observardes e ao mundo que vos circunda, podeis ver que vossa ação é simplesmente uma reação, que todas as vossas atividades são reações, “respostas” correspondentes a vossos gostos ou aversões.

Acompanhai-me por mais alguns instantes, pois desejo mostrar que existe uma atividade não resultante de ideia. Vereis que há uma ação procedente da total negação da reação, ação que, por conseguinte, é criadora. Para compreender isso, para penetrar esta questão — que, em verdade, não é complexa, porém requer um estado mental fora do comum — impende compreenderdes as vossas reações, das quais se origina a vossa ação diária. Nós reagimos, nos revoltamos, defendemos, resistimos, adquirimos, submetemo-nos, e tudo isso são reações.

Digo-vos alguma coisa que vos desagrada e, portanto, tratais de fazer algo em reação a isso de que não gostais e que não quereis aceitar. Nesse nível estamos atuando a todas as horas. Fostes educado, condicionado para seguir um certo padrão de vida; esse padrão fica sendo vossa própria vida, vossa norma de vida, interior e exteriormente. E, quando alguém o contesta, vos revoltais, reagis de acordo com vosso condicionamento, consoante os vossos hábitos; dessa reação origina-se outra ação. Vivemos, assim, a mover-nos de reação para reação e, por conseguinte, nunca estamos livres. Esta é uma das origens do sofrimento. Por favor, procurai compreender isso.

Não pode deixar de haver reação. Ao verdes uma coisa feia, vossa mente tem de reagir; ao verdes algo belo, ela tem de reagir; ao verdes uma serpente venenosa, ela tem de reagir; se assim não fosse, estaríeis morto, insensibilizado, desvitalizado, embotado. Mas essa reação difere da reação que a sociedade e vós mesmos desenvolvestes, mediante vossas experiências e que se tornou vosso condicionamento. Se, ao verdes uma árvore, o pôr do sol, não reagis, estais entorpecido. Mas, quando “reagis” em conformidade com vossa autopiedade, com vossas conclusões, vossos hábitos, vossos fracassos, êxitos, esperanças, desesperos — tal reação leva à ação incompleta e, consequentemente, à continuação do conflito e do sofrimento.

Espero estejais percebendo a diferença entre as duas qualidades de reação. A reação que vê e não traduz o que vê segundo seu próprio condicionamento — essa é uma qualidade de reação; é a ação real. E a outra qualidade de reação é aquela que vê e diz: “Isto é belo, quero possuí-lo”. Essa reação procede do condicionamento, da memória, da autocompaixão, do desejo, etc. A reação nascida da ideia é uma coisa, e outra coisa é a reação sem ideia. A reação nascida da “ideação”, de conclusões, de hábitos, de tradições, conduz ao cativeiro, à amargura. E a reação sem ideia, consistente puramente em observar, essa conduz à liberdade — ou, melhor, ela é liberdade — não “conduz”; a liberdade não vos conduz a parte alguma.

Só a mente livre se acha no estado de negação — negação das reações positivas de uma mente condicionada. E só a mente mantida na negação, no estado de negação, pode perceber, num clarão, o que é verdadeiro. Vede, por favor, que não estou dizendo nada de complexo; isto não é complexo, é muito simples. Mas, justamente por causa de sua simplicidade, perdeis seu significado. Porque vossa mente é tão complicada, quereis achar muitas coisas no que estou dizendo — que, afinal de contas, é bem simples. Vossas reações são produto de vosso condicionamento de hinduísta, de homem rico, de homem pobre, de mulher, de homem — do que quer que sejais — com todas as vossas experiências, vossas esperanças, vossos deuses, vossas ânsias, vossos apegos; o condicionamento existe, e vossas reações partem dele. E quanto mais reagis, tanto mais essas reações se aprofundam em vós mesmo. Continuais, assim, no cativeiro de vossas próprias reações, de vossas próprias limitações. Isto é bastante simples. Não requer minuciosa investigação psicológica. Mas, o que verdadeiramente exige energia, atenção, é a negação total das reações positivas da mente condicionada. Ao negardes, observais sem “ideação” sem nenhum pensamento; estais olhando.

Ora, senhores, quando desejais compreender vossos desditosos filhos — desditosos, porque não sabeis educá-los — tratais de mandá-los para escola... e está tudo acabado: as crianças se tornam máquinas.

Não estou fazendo uma preleção sobre educação. Se tendes um filho, deveis observá-lo, prestar-lhe atenção. Se desejais conhecê-lo, não digais que ele deve ser isto ou aquilo, não o obrigueis a fazer isto ou aquilo; observai, aprendei, porque é vosso coração que deve “responder”, e não vossa pequena e feia mentalidade possessiva.

Assim, deveis aprender a conhecer o vosso filho. E não podeis aprender se “respondeis”, se “reagis” como pai, com vossa autoridade, vosso exagerado senso de importância — como se de fato tivésseis criado um mundo maravilhoso! Assim, se desejais compreender uma criança, deveis olhá-la sem pensamento nenhum, descobrir o que ela sente, o que pensa. Ora, se a olhais dessa maneira, vossa mente estará nesse momento vazia, porque estareis interessado na criança. Não a estareis “vestindo” com vossas ideias, vossas esperanças e temores; desejais ver o que ela é.

Pois bem; se sou capaz de olhar o sofrimento — o incidente, a morte de meu filho; se sou capaz de olhar isso, olhar o fato, nesse caso, olho sem nenhuma reação; minha autopiedade e minhas lembranças foram postas de parte. Mas, em geral, nos comprazemos na autopiedade. Não temos outra coisa de que nos nutrirmos e, por conseguinte, a autopiedade se tornou nossa nutrição. Quanto mais velhos ficamos, mais importantes se tornam as lembranças, as coisas pretéritas.

Deste modo, a ação, nascida de reação gera sofrimento. Nossos pensamentos resultam, quase todos, do passado, do tempo. A mente não alicerçada no passado, que bem compreendeu esse “mecanismo” de reação, pode atuar, a cada minuto, de maneira total, completa.


 Krishnamurti  
 http://pensarcompulsivo.blogspot.com

   

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