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quarta-feira, 25 de julho de 2018

SOFRIMENTO É MEMÓRIA 
MAIS AUTOPIEDADE

Segunda Parte

Sabeis o que entendo por “autopiedade”? Autopiedade significa o íntimo sentimento de não poder contar com ninguém; ter intimamente o sentimento de estar abandonado, desprezado; de não ser amado, embora ame; de ter fracassado completamente; de que é necessário ter algum êxito; de ser isto ou de não ser aquilo — a perene “asserção” do próprio “eu”! Em vossas lágrimas, em vossas alegrias, em vossa frustração, em vossas agonias, está o fio, o fio inquebrável, da autopiedade, atravessando toda a vossa vida; e isso é indolência. Foi aí que começastes a submeter-vos, a estabilizar-vos, a “engordar” mentalmente. E todos buscam, nessa indolência, a segurança. E, uma vez firmado esse sentimento de segurança psicológica, ele se torna o sentimento “de onde” agis, “de onde” existis, “de onde” se nutre a vossa vida.

Como disse, não vos limiteis a escutar palavras, mas tratai de observar vossa própria mente, vosso próprio estado de consciência; procurai ver em que grau de exatidão as palavras representam vosso próprio estado; observai vossa própria mente em funcionamento. Então o que estou dizendo terá significação; mas, se vos estais amparando unicamente nas palavras, neste caso estais vazios; e vossas taças jamais se encherão, ainda que fiqueis a buscar por toda a eternidade. Assim, escutar é, com efeito, a observação de vossa própria mente; ver é, com efeito, observar o movimento de vosso próprio pensamento. Porque é o pensamento e a palavra que vos impede de escutar e de ver. E se desejais compreender, em sua inteireza, o problema do sofrimento, o problema da ação, deveis compreender a autopiedade.

O sofrimento é, ao mesmo tempo, a ação própria e a ação recíproca da autopiedade e da memória. Vós sofreis por terdes perdido alguém; sofreis porque alguém não vos ama; sofreis porque não conseguis um emprego melhor; sofreis porque alguém é mais belo, mais inteligente, mais ativo, mais sensível do que vós. Sois ciumento, invejoso, ávido. Tudo isso são sinais de conflito e de sofrimento. O sofrimento não é uma “crise tremenda” causada por algo incontrolável ou incompreensível. Vós podeis transformar vossa mente de maneira completa, podeis ficar de todo livre do sofrimento e nunca mais serdes por ele atingido.

Se nesta tarde ficardes escutando — escutando realmente, sem esforço algum, sem o desejo de vos livrardes do sofrimento — se puderdes escutar como que num “encantamento”, com naturalidade, com prazer, assim como contemplais o entardecer, o esvoaçar de uma ave ou de uma folha — como se o que escutais não se relacionasse convosco — vereis que a carga do sofrimento será retirada de vossos ombros, não momentaneamente, não por um dia: estareis livre do sofrimento.

Se puderdes compreender o sofrimento — o fato, e não as ideias que formais e nutris a respeito do sofrimento — tereis descoberto o meio de fazê-lo cessar. Existe a ideia do sofrimento e existe o fato real, o sofrimento; são duas coisas diferentes. Em geral, temos a ideia do sofrimento. Se meu filho morre, se perco minha mulher, se alguém não me ama, se não são tão inteligente como vós, a ideia importa mais do que o fato. Não sabemos enfrentar o fato de que há sofrimento (não a ideia de sofrimento).

Por favor, procurai compreender a diferença entre as duas coisas. Porque olhamos o sofrimento através da ideia e, formando ideias a seu respeito, não o olhamos verdadeiramente. O nutrir ideias sobre o penar é autopiedade, é reação da memória e, por conseguinte, não é o sofrimento. A ideia de alimento não é o alimento. Mas a maioria de nós vive de ideias, herdadas ou adquiridas; essa é nossa nutrição mental, com que nos satisfazemos. Por isso, nossa mente se torna embotada, insensível, desatenta, vazia.

Perceber o fato do sofrimento é “estar fora” da autopiedade, livre dela. Autopiedade é uma ideia que temos acerca de nós mesmos. “Porque isso acontece a mim, e não a vós; porque não sou tão poderoso, tão famoso, tão importante, tão popular como sois; porque me foi arrebatado meu filho, minha mulher; porque fui por ela abandonado; porque não sou amado?” — Tudo isso são ideias, nascidas da autopiedade, reações da memória. E com essa autopiedade, com essa reação da memória, olhamos aquilo que consideramos “sofrimento”. O que olhamos, por conseguinte, não é o sofrimento, porém, sim, o movimento da autopiedade. Isso poderá ferir-vos os ouvidos, mas é o fato — o fato psicológico. Se disserdes a uma pessoa que perdeu o pai, a mulher, o irmão, quem quer que seja: “Olhai o fato, não vos deixeis dominar por vossa autopiedade” — essa pessoa vos considerará muito cruel, sem coração, sem compaixão, sem amor.

O fato é que ninguém está livre do sofrimento. Se observardes a vós mesmo em sofrimento, vereis que, só compreendendo-lhe o mecanismo integral, podeis deixar de sofrer. Ao observardes vosso próprio sofrimento, vereis quão estreitamente ele está relacionado com a autopiedade e com todas as lembranças de coisas passadas. São as coisas que passaram e a lembrança que delas guardamos, que geram a autopiedade e o sentimento de solidão. E, assim, o penar continua, dia após dia, mês após mês, até morrerdes. Levantastes em torno de vós mesmo uma muralha de autopiedade, uma muralha de lembranças frustradas. Estais vivendo num túmulo e vossa vida perdeu toda a significação. Daí, investigais o sofrimento, daí ledes livros, daí procurais descobrir como dele escapar.

Por isso, tendes vossos deuses, vossos livros, vossos cinemas, vossas diversões. Todas essas coisas estão no mesmo nível. Se recorreis a uma bebida ou se preferis ir ao templo — é a mesma coisa. Tudo são vias de fuga, nascidas de uma mente que é a própria essência da autopiedade. Não podeis livrar-vos da autopiedade; não digais: “Como me livrarei da autopiedade?” Isso é outra forma de preocupação com vós mesmo e, portanto, autopiedade. O mais que podeis fazer é procurar conhecer o que vos impede de olhar o fato — o sofrimento; o fato — a angústia, a confusão, a desdita que vos envolvem.

Como olhais o fato do sofrimento? Quando o olhais sem autopiedade, sem a recordação das coisas que passaram, há então sofrimento? Se não houvesse a lembrança de meu filho, de como era belo, feliz, o que poderia tornar-se; se não me estou imolando à lembrança dele; se, por meio dele, não “imortalizar” a mim próprio; se nele não depositei tudo — minha própria pessoa, minhas ideias, minhas esperanças, meus temores, minhas frustrações — tudo lembranças de coisas pretéritas — e se a autopiedade e a lembrança das coisas que passaram não existem, há então sofrimento? Não posso, então, olhar o fato com uma mente de todo diferente? Essa mente não é indolente; está livre das coisas que produzem a indolência, a preguiça, a inércia. Isto é, a autopiedade e a lembrança são as causas que tornam a mente embotada; são elas que impedem o completo e instantâneo percebimento do fato. Assim, quem deseja compreender o sofrimento deve compreender todo esse mecanismo de ação egocêntrica e “expansível”, e o mecanismo do hábito, da memória. Vós sois o que sois — um campo de batalha de vossas lembranças, e nada mais. Retirem-se as lembranças da infância, da juventude, de todas as coisas que tendes adquirido, de quantas tendes experimentado e sofrido, das coisas que pensais que sois — e que restará de vós? É o sentimento de solidão, de vazio, de insuficiência, que causa a autopiedade; e esse pensamento gera infinito penar e agitação. Estais-me escutando a fim de vos compreenderdes. E, compreendendo o que estou dizendo, podereis eliminar instantaneamente esse processo da autopiedade.

Krishnamurti 
http://pensarcompulsivo.blogspot.com
 

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