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terça-feira, 24 de julho de 2018

MERGULHO NA PAZ II


 
Pretensão infantil me levou a filosofar com a fonte. Desejei estimulá-la, e disse-lhe:
- Hoje, minha amiga, és humilde e ainda muito longe estás de tua imersão no Mar. Nada de impaciência. Tem fé e persistência. Algum dia chegarás ao Mar e herdarás sua imensidão.
E a fontezinha do grotão, de voz de cristal gelado, falando bonito, me disse:
- Não vês? Eu estou vindo do Mar, embora pareça nascer do fundo da pedra. Já sou o Mar. Nunca deixei de ser o Mar.

 
* * *
O carneirinho, rebelde, um dia fechou os ouvidos às mansas palavras do piedoso pastor. Corajoso, renunciou ao redil e saiu. Audaz e só, entregou-se à aventura ou desventura dos campos. Saiu sozinho. Padeceu sozinho e solitário, sem a proteção do redil, sem a companhia dos outros, sem o sermão do pastor…
A estrela que tanto buscava, vendo-o, intimorato e livre, a procurar por ela, veio do céu para ele, para fazer-lhe companhia, para fazê-lo feliz, para guiá-lo.
Os outros, com medo da dor, ficaram no redil, protegidos, escutando histórias de estrelas inventadas pelo pastor.

 
* * *
Agonizante, o ricaço pediu o talão de cheques.
Fixou nele os olhos pastosos e quase sem vida. Nada falou. Mas cada um leu naquele olhar uma expressão indefinida.
Alguns entenderam que naqueles olhos havia saudade.
Outros achavam ser remorso o que aqueles olhos diziam.
Outros viram neles uma imensa frustração.
Nenhum conseguiu reconhecer o menor sinal de gratidão.

 
* * *
Desabou a chuva e estragou a festa dos jovens. Eles a amaldiçoaram.
Aquela mesma chuva trouxe vibrações de esperança ao homem que semeara o milho. Ele a abençoou.

 
* * *
Um tolo, todos os dias, batia no peito e repetia contrito: “Eu pecador, eu pecador, eu pecador…”
Acabou sendo.
Um sábio, mesmo quando em sofrimento, orava, repetindo: “Eu e Deus somos um, Deus e eu somos um, eu e Deus somos um…”
Acabou sendo.

 
* * *
Era uma vez um arquipélago em mar bonito e largo, soprado de ventos suaves e de atmosfera sempre limpa. Nunca se vira nele um tufão.
Naquele mar, sempre a tanquilidade. Na alma de cada ilha, e entre as ilhas, a paz não existia. Ao contrário, eram vaidosas e estavam sempre competindo.
Dizia uma:
- É nas minhas águas que os pescadores acham as pérolas mais valiosas para enfeitar o colo das princesas.
A outra retrucava:
- Esqueces que é nas minhas praias que os poetas do reino, enamorados, compõem os mais belos cânticos. Fazem canções que amenizam os sofrimentos do povo pobre e também dão encanto aos sonhos de amor das princesas.
Uma terceira interferia:
- Onde é que os pescadores acham alimento? É nas minhas águas que apanham peixes, tartarugas, camarões…. É de mim que retiram o sustento dos filhos. O que sobra vão vender no mercado.
Passaram-se dias, meses, anos, séculos… Sempre a paz no mar. Sempre a rixa no arquipélago.
Numa tarde, de repente, uma das ilhas começou a sacudir-se e, em poucos minutos, agitada em agonia vulcânica, desfazendo-se ruidosamente, desapareceu sob as águas.
Enquanto isso, as outras, ainda estupidamente rivais, embora aparentando compaixão, para si mesmas diziam:
- Antes ela do que eu.
Demorou pouco. Também atingidas pela comoção da plataforma, foram igualmente tragadas pelo fogo e pelo mar.
De si mesma e das outras, cada ilhazinha conhecia apenas o que ficava acima da água. Ignoravam que, no fundo, eram uma só. Ignorantes, não percebiam que o mal ou o bem não atingiria uma sem atingir as outras. Por isso eram orgulhosas, estúpidas e rivais.
Cada homem é uma ilhazinha ignorante no arquipélago da humanidade.

 
* * *
Um dia, um gênio estava na praia a ver o mar. Era um daqueles maravilhosos seres que podiam usar os imensos poderes do Céu.
A certa hora, observou que uma ânfora pequena ia e vinha, flutuando nas ondas.
- Quem és? – perguntou o gênio.
- Sou Ahamkara. Sou apenas um pouquinho da água do mar – respondeu uma vozinha tímida e sofredora.
- Estás enganado. Não és somente um pouquinho do mar. Em realidade, és o próprio mar.
- Quem me dera, Senhor. Sou coisa nenhuma. Sou tão miserável! Não passo de uma porçãozinha do mar, dentro desta ânfora – continuou a lamentar-se e a teimar Ahamkara.
- Em verdade, repito, estás errado. És todo o mar infinito.
Para provar o que dizia, com um golpe de bastão arrebentou a ânfora, ao mesmo tempo que perguntava, desafiando.
-Ahamkara, onde estás? Quem és?!
E o mar infinito respondeu com silêncio.

 
* * *
Temos errado em supor que eu sou um e tu és outro. Vale a pena escutar a inteligente advertência de um rio que assim falou a outro:
- Não somos dois rios nascidos de fontes diferentes, correndo em leitos diferentes, sem nada ter um com o outro. Se achamos que não somos um só é porque uma ilha fluvial nos separa e nos ilude. O nome desta ilha é Ignorância.

 
* * *
Atirando moeda ao mendigo, pensava um homem:
- Com isto, afasto do meu destino vir a ser igual a ele.
Era um covarde.
Um outro deu a esmola, convencido de que “dar aos pobres é emprestar a Deus”.
Era um mercenário.
Um homem ajudou ao mendigo porque via na esmola, no mendigo, no ato de dar, e em si mesmo o próprio Ser Supremo.
Era um santo.


Professor Hermógenes - Trechos extraídos do livro “Mergulho na Paz”
http://www.ippb.org.br

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