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quarta-feira, 28 de junho de 2017

A DÁDIVA, O ALIMENTO
E O TRABALHO


Um homem opulento disse: "Fala-nos da Dádiva."

E ele respondeu:

"Vós pouco dais quando dais de vossas posses.   É quando derdes de vós próprios, que realmente dais. Pois, o que são vossas posses, senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã? E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultra prudente que enterra ossos nas areias movediças, enquanto segue os peregrinos para a cidade santa? E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade? Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?

Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza seus presentes.

E há os que pouco têm e dão-no inteiramente. Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.

E há os que dão com alegria, e essa alegria é sua recompensa.

E há os que dão com pena, e essa pena é seu batismo.

E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria e sem pensar na virtude: Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço. Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala, e, através de seus olhos, Ele sorri para o mundo.

É belo dar, quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido; E, para os generosos, procurar quem receberá é uma alegria maior ainda que a de dar.

E existe alguma coisa que possais conservar? Tudo que possuís será um dia dado. Dai, portanto, agora para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.

Dizeis muitas vezes: "Eu daria, mas somente a quem merece." As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos. Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.

Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais. E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego. E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?

E quem; sois vós para que os homens devam expor seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu orgulho rebaixado?

Procurai ver, primeiro, se vós próprios mereceis ser doadores e instrumentos do dom. Pois, na verdade, é a Vida que dá à Vida — enquanto vós, que vos julgais doadores, sois simples testemunhas.

E vós que recebeis — e vós todos recebeis — não assumais nenhum encargo de gratidão, a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores. Antes, erguei-vos juntos com eles, sobre asas feitas de suas dádivas; pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai."


Um velho estalajadeiro disse: "Fala-nos do Comer e Beber."

E ele respondeu:

"Pudésseis viver do perfume da terra e, como uma planta, nutrir-vos da luz. Mas, já que deveis matar para comer e roubar do recém-nascido o leite de sua mãe para saciar vossa sede, fazei disso um ato de adoração.

E que vossa mesa seja um altar onde os puros e os inocentes da floresta e da planície são sacrificados àquilo que é ainda mais puro e mais inocente no homem.

Quando matardes um animal, dizei-lhe no vosso coração: "Pelo mesmo poder que te imola, eu também sou imolado, eu também servirei de alimento para outros; Pois a lei que te entregou às minhas mãos me entregará a mãos mais poderosas. Teu sangue e meu sangue nada são senão a seiva que nutre a árvore do céu."

E quando morderdes uma maçã, dizei-lhe no vosso coração: "Tuas sementes viverão no meu corpo, E os brotos de teus amanhãs florescerão no meu coração, E teu perfume será meu hálito, E, juntos, regozijar-nos-emos em todas as estações."

E no outono, quando colherdes a uva de vossos vinhedos para o lagar, dizei-lhe no vosso coração: "Eu também sou um vinhedo, e minha fruta será recolhida para o lagar, E, como um vinho novo serei guardado em vasos eternos."

E no inverno, quando beberdes o vinho, que haja no vosso coração uma canção para cada taça; E que haja na canção um pensamento para os dias do outono, para ovinhedo e para o lagar."


Então, um lavrador disse: "Fala-nos do Trabalho."

E ele respondeu, dizendo:

"Vós trabalhais para acompanhar o ritmo da terra, e da alma da terra. Porque ser indolente é tornar-se um estranho às estações e afastar-se do cortejo da vida, que avança com majestade e orgulhosa submissão rumo ao infinito.

Quando trabalhais, sois uma flauta através da qual o murmúrio das horas se transforma em melodia. Quem de vós aceitaria ser um caniço mudo e surdo quando tudo o mais canta em uníssono?

Sempre vos disseram que o trabalho é uma maldição; e o labor, uma desgraça. Mas eu vos digo que, quando trabalhais, realizais parte do sonho mais longínquo da terra, desempenhando assim uma missão que vos foi designada quando esse sonho nasceu.

E, apegando-vos ao trabalho, estais na verdade amando a vida. E quem ama a vida através do trabalho, partilha do segredo mais íntimo da vida.

Mas se, em vossas dores, chamais o nascimento uma aflição e a necessidade de suportar a carne, uma maldição inscrita na vossa fronte, então eu vos direi que só o suor de vossa fronte lavará esse estigma.

Disseram-vos que a vida é escuridão; e no vosso cansaço, repetis o que os cansados vos disseram. E eu vos digo que a vida é realmente escuridão, exceto quando há um impulso.

E todo impulso é cego, exceto quando há saber.

E todo saber é vão, exceto quando há trabalho.

E todo trabalho é vazio, exceto quando há amor.

E quando trabalhais com amor, vós vos unis a vós próprios e uns aos outros, e a Deus.

E que é trabalhar com amor?

É tecer o tecido com fios desfiados de vosso próprio coração, como se vosso bem-amado tivesse que usar esse tecido.

É construir uma casa com afeição, como se vosso bem-amado tivesse que habitar essa casa.

É semear as sementes com ternura e recolher a colheita com alegria, como se vosso bem-amado fosse comer-lhe os frutos.

É pôr em todas as coisas que fazeis um sopro de vossa alma. E saber que todos os abençoados mortos vos rodeiam e vos observam.

Muitas vezes ouvi-vos dizer como se estivésseis falando em sonho: "Aquele que trabalha no mármore e encontra na pedra a forma de sua alma, é mais nobre do que aquele que lavra a terra. E aquele que agarra o arco-íris e o estende na tela em formas humanas, é superior àquele que confecciona sandálias para nossos pés."

Porém eu vos digo, não em sono, mas no pleno despertar do meio-dia, que o vento não fala com maior doçura aos carvalhos gigantes do que a menor das folhas da relva; E grande é somente aquele que transforma o ulular do vento numa canção tornada mais suave pelo seu próprio amor.

O trabalho é o amor feito visível.

E se não podeis trabalhar com amor, mas somente com desgosto, melhor seria que abandonásseis vosso trabalho e vos sentásseis à porta do templo a solicitar esmolas daqueles que trabalham com alegria.

Pois se cozerdes o pão com indiferença, cozereis um pão amargo, que satisfaz somente à metade da fome do homem. E se espremerdes a uva de má vontade, vossa má vontade se destilará no vinho como veneno.

E ainda que canteis como os anjos, se não tiverdes amor ao canto, tapais o ouvido do homem às vozes do dia e às vozes da noite."




 Khalil Gibran, em "O Profeta"

 

 

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