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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

NOSSA PROTEGIDA TRAVE DE TROPEÇO
 DA SERVIDÃO EGÓICA

Todo homem que adotou a disciplina filosófica está inclinado a atribuir aos seus julgamentos um valor muito maior que o devido. Via de regra, ele procura tirar conclusões que venham de encontro aos seus mais caros preconceitos e convenham às suas tendências herdadas. É para ele um hábito não aceitar, numa discussão, senão os fatos que se encaixam perfeitamente nos seus pontos de vista já existentes. Por isso, e não raro, vem ele a recusar aquilo que mais urgentemente necessita, da mesma maneira pela qual um inválido poderá recusar-se a tomar um medicamento de gosto amargo do qual necessita inadiavelmente, por preferir alguma guloseima de sabor adocicado. 

Toda vez que um homem insere o seu ego num raciocínio, este resulta desequilibrado e distorcido no que diz respeito ao seu sentido da verdade. Se ele se limitar a julgar todo e qualquer fato pelos padrões da sua experiência prévia, impedirá com isso o surgimento de novos conhecimentos. Ao examinarmos as manifestações da sua mentalidade em palavras e atos, sua atitude habitual (conquanto inconsciente) será esta: "Isto se encaixa dentro daquilo que eu acredito; deve, portanto, ser verdade; este fato não contradiz aqueles fatos dos quais eu tenho conhecimento; por isso, aceitá-lo-ei; esta crença é totalmente contrária às minhas; deve, portanto, ser errônea; este fato não me interessa; portanto não tem valor numa discussão; aquela explicação é de difícil compreensão para mim, por isso ignoro-a em favor de uma outra a qual compreendo e a qual deve, consequentemente, ser verdadeira!"

Todos os que se desejarem iniciar na verdadeira filosofia devem começar por deixar de lado esses pontos de vista meramente egoístas. O que neles se evidencia é apenas orgulho e vaidade; cuida-se tão somente de corroborar os próprios preconceitos e não de promover a busca da verdade; ali o estudo das obras impressas visa exclusivamente a confirmar conclusões prévias; o recurso ao mestre se faz não para obter novos conhecimentos mas para ratificar antigas crenças. 

Mantendo o eu em primeiro plano no seu pensamento, o indivíduo será inconscientemente atraído para numerosos e perigosos enganos. As simpatias e antipatias geradas por esses pontos de vista pessoais constituem empecilhos à descoberta daquilo que uma ideia ou objeto realmente é. Amiúde fazem com que um homem veja coisas que absolutamente não existem, mas que, através de associações de ideias, ele imagina existir. Fato patológico é que as várias formas de insanidade e perturbações mentais estão enraizadas no ego e que todas as obsessões e complexos estão igualmente vinculados ao eu. 

Aquele que jamais adotou a disciplina filosófica amiúde se enamora de si mesmo e a sua disposição mental fica presa por todos os lados ao pronome eu. Esse eu priva-o da verdade, bloqueando o seu acesso à percepção correta. Esse eu prejulga de forma inconsciente os argumentos e decide por antecipação as crenças, de modo que desaparece a garantia de se chegar às conclusões certas, restando apenas voltar, através das justificativas e racionalizações, ao ponto de vista mental inicial. Esse eu é como uma aranha apanhada na sua própria teia. 

Esse eu tranca a mente dentro de um armário, perdendo assim as vantagens das novas ideias que de bom grado entrariam. Quando o ego se converte no centro dos estados obsessivos, nós nos deparamos com inteligências amesquinhadas pela intolerância religiosa ou toldadas pelas sinuosidades metafísicas ou embrutecidas pelo materialismo irreflexivo ou desequilibradas pelas crenças tradicionais e sobrecarregadas pelas crenças adquiridas — todas recusando-se cegamente a examinar aquilo que não é conhecido, que não é agradável,  que não é sabido, repudiando tudo a priori. 

Tais inteligências aceitam de boa vontade aquilo que lhes agrada e repudiam aquilo que lhes desagrada, inventando depois racionalizações para justificar suas preferências, mas em nenhum dos casos a pergunta: — "Isto é verdade?" — é investigada independentemente das suas predileções, nem é o resultado de tal investigação aceito, quer venha de encontro àquelas predileções quer não. 

Significa tudo isto que aqueles que professam as opiniões pessoais mais fortes são os mais difíceis de levar a  verdade, tais pessoas precisariam absorver a lição de Jesus: "Se não vos tornardes como as criancinhas, jamais entrareis no reino do Céu". A humildade implicada neste dito tem sido objeto de muita incompreensão. Trata-se de uma mentalidade inocente mas não pueril. Não se trata de uma dócil submissão a pessoas malévolas ou de uma ridícula sujeição à pessoas tolas. Trata-se de deixar a parte todos os preconceitos oriundos da experiência e todas as preconcepções decorrentes do pensamento inicial até que, ao enfrentar o problema da verdade, não nos sintamos peados nem perturbados por eles. Trata-se de chegar a uma alienação total das inclinações pessoais e de fugir por completo à influência dos pensamentos do eu e do meu. Trata-se de deixar de usar como argumento as expressões: "Eu penso assim" — ou — "Ficarei com a minha opinião" — e de deixar de crer que aquilo que nós sabemos tem, necessariamente, de ser verdadeiro. Tal argumento leva simplesmente a uma opinião, e não à verdade. As crenças pessoais podem ser falsas, o conhecimento aceito pode ser fictício. É preciso caminharmos com humildade nestes redutos filosóficos. Os mestres certos são reconhecidamente raros, mas os discípulos certos também o são! 

A filosofia é um estudo puramente desinteressado e deve ser abordada sem quaisquer restrições mentais prévias. Mas as predisposições estão amiúde tão arraigadas, e por conseguinte tão escondidas, que os estudantes nem sempre suspeitam e menos ainda constatam a sua presença. Até mesmo alguns dos assim chamados filósofos são portadores de uma determinação subconsciente de não aceitar senão aquilo que contam ouvir e sob influência dessa auto-sugestão permitem que as suas inclinações sobreponham-se aos seus julgamentos e que a prepotência escravize a razão. 

Por isso o estudante compenetrado deve extirpar de forma consciente esses confortáveis subterfúgios, atrás dos quais ocultam as insinceridades e as hipocrisias do raciocínio, suas fraquezas pessoais e seu egoísmo. No decurso de seus estudos, e sempre que a sua mente estiver empenhada em algum problema, ele deverá pelejar por livrar-se da pressão de todas as predileções de ordem pessoal. Tal desprendimento mental é raro e só poderá ser conseguido através de um desenvolvimento intencional. Deve o estudante lembrar-se sempre que lhe cabe primeiro enunciar simplesmente e depois analisar com isenção um caso sob todos os ângulos, antes de preferir um julgamento. 

A verdade nada teme da investigação plena, pelo contrário, é por ela fortalecida. Se descobrir então que está errado, o estudante deverá acolher de boa sombra a revelação e não esquivar-se a ela, por condoer-se das machucaduras da vaidade ferida e da inesperada humilhação. Ele precisa de uma completa elasticidade mental a fim de livrar-se da escravidão aos preconceitos e conseguir uma integridade interior absoluta e uma saúde mental genuína.  

O estudante não deve nunca esquivar-se a um problema. Não se deve furtar a enfrentar seus próprios complexos. Não lhe resta senão encará-los resolutamente. Ele tem de, ao menos, ser sincero consigo próprio, tentando colocar-se acima das preconcepções pessoais, pois somente assim poderá ver as coisas na sua exata perspectiva. Sua afeição à verdade tem de ser sincera e incorruptível como era a de Sócratis. Uma firme objetividade intelectual ao invés de uma débil esperança emancipará a sua mente da servidão do ego e a capacitará a absorver a verdade sem oferecer resistência. A mente será assim alçada a uma atmosfera de imparcialidade e impessoalidade e habituada a um raciocínio ininterrupto de autonegação, que é o único a propiciar um discernimento correto. E mesmo aqueles que consideram essa tarefa demasiado difícil na vida cotidiana podem ao menos tentar objetivar temporariamente o seu ideal durante aqueles minutos ou horas dedicados a tais estudos. 

Onde quer que a verdade conduza, para lá deverá ir o estudante. Se ele trair sua percepção racionalista e se demonstrar um traidor de seu mais alto ideal ante as pressões violentas de preconcepções que exijam um rasteiro conformismo, ele se condenará à pena de permanecer perpetuamente cativo de uma ignorância banal. 

Em resumo: a busca da verdade encetada pelo estudante principia pela dependência à autoridade, prossegue com o uso da lógica e depois da razão, tem continuidade com o cultivo da intuição e da experiência mística, e culmina com o desenvolvimento da percepção ultramística. A filosofia mais elevada é tão sabiamente balanceada e tão lindamente integrada que não desdenha qualquer das formas de conhecimento, mas usa-as cada uma no seu devido lugar. Daí, embora o nome filosofia tenha por vezes sido usado na sua acepção acadêmica referindo-se a um sistema metafísico, o mais das vezes foi ele usado na sua acepção mais antiga e verdadeira referindo-se à visão unificada que completa a metafísica com o misticismo e incorpora a religião à ação. 

O estudante de filosofia deveria compreender que, uma vez que ele também pratica a meditação, é preciso que preencha os mesmo requisitos purificadores que são preconizados ao estudante místico. Se os seus exercícios de meditação devem ser protegidos dos perigos ali envolvidos, ele deverá abster-se sempre de prejudicar os outros, enobrecendo assim o seu caráter, dominando suas paixões e cultivando suas virtudes, essas virtudes recomendadas pelos profetas de todas as grandes religiões.

                                    
Paul Brunton





Conta uma amiga que certa vez estava pescando num trecho amplo e profundo de um rio quando uma das companheiras lhe chamou a atenção para um lindo arco-íris que se havia formado ao longo do rio: "Veja, o arco-íris está bebendo água... e a água está tremulando em toda a extensão de seu reflexo...!" Foi a cena mais bela que ela presenciou e, mesmo conhecendo a definição científica de como se forma o arco-íris, não levou isso em consideração, pois sabia que de alguma forma,  aquilo que estava vendo fugia a qualquer definição e entregou-se, como uma criança, aquele momento, repetindo em silêncio para si mesma: "São os mistérios de Deus". Se abandonássemos as definições, os julgamentos, os condicionamentos e tudo mais que nos tolhe uma observação mais profunda e verdadeira, estaríamos mais perto do acerto." Onde quer que a verdade conduza, para lá deverá ir o estudante." KyraKally
 

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