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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A ARTE DE PASSEAR II

Há milhares de anos, diferentes tradições religiosas usam longas peregrinações por terras desconhecidas como meio e método para a libertação dos apegos interiores. É preciso abrir mão tanto dos objetos externos como dos conteúdos internos, para conhecer a liberdade espiritual. O budismo, o hinduísmo e o cristianismo têm disciplinas espirituais que incluem o abandono da vida “normal” - feita de hábitos e compromissos -  para viajar pelo mundo durante um período indefinido de tempo.

As caminhadas curtas também são parte daquilo que, não por acaso, passou a ser chamado de “caminho interior”. O ato de caminhar era um item básico da vida cotidiana e da disciplina espiritual nas escolas de filosofia do mundo antigo. 

Para o cidadão moderno, os passeios a pé, de trinta ou quarenta minutos diários, são exercícios eficientes de meditação e higiene mental.  Alguns alegam que não têm tempo para isso. O argumento é compreensível. O hábito de caminhar exige que se abra mão da rigidez e da imobilidade. É necessário renunciar à rotina da pressa emocional para olhar o mundo de outros pontos de vista, enquanto mantemos o corpo em movimento e observamos o fluxo de nossos sentimentos e pensamentos.  

A prática do desapego está de tal forma associada à arte de passear que, para o escritor chinês Lin Yutang, “o verdadeiro viajante é sempre um vagabundo, com as alegrias, as tentações e o sentido de aventura que tem o vagabundo. Viajar é andar à toa, ou não é viajar”. Segundo Yutang, “a essência da viagem é não ter deveres nem horas marcadas”. É recomendável esquecer os assuntos pessoais.

Ele acrescenta:

“O bom viajante é o que não sabe aonde vai, e o viajante perfeito é o que não sabe de onde vem. Nem sabe seu nome e sobrenome. É provável que esse viajante não tenha um único amigo em terra estranha, mas, como disse uma monja chinesa, ‘não estimar a ninguém em particular é estimar a humanidade em geral’. Não ter um amigo particular é ter a todos por amigos. Esse viajante, que ama a humanidade em geral, mistura-se com ela e vagueia, observando o encanto das gentes e de seus costumes.” 

Defensor da espontaneidade, autor de obras marcadas pelo espírito taoísta, Yutang afirma que o equipamento mais necessário para quem passeia “é um talento especial no peito e uma visão especial debaixo das sobrancelhas”.  Ele prossegue:

“O que interessa é saber se o viajante tem coração para sentir e olhos para ver. Se não os tem, suas excursões à montanha são pura perda de tempo e de dinheiro; em compensação, se os tem, poderá conseguir a maior alegria das viagens sem ir sequer às montanhas, mas permanecendo em sua casa e olhando os arredores, e percorrendo os campos para contemplar uma nuvem fugitiva, ou um cachorro, ou uma cerca, ou uma árvore solitária.” 

Em meio à natureza, o caminhante renova a sua vitalidade física enquanto medita. Se meditar é expandir a consciência em direção ao que é imenso, sagrado e muito maior que ela própria, então é possível haver meditações inconscientes e involuntárias. E é isso que ocorre quando caminhamos. O convívio com plantas e animais nos ensina que a inteligência universal está por toda parte. Há uma inteligência nas orquídeas. Os pássaros têm sua linguagem. O vento sugere coisas. As árvores são seres evoluídos. Para o escritor Maurice Maeterlinck, cada planta que encontramos pelo caminho é um ser dotado de inteligência:

“Não é somente na semente ou na flor, mas em toda a planta, caule, folhas e raízes, que se descobre, se quisermos inclinar-nos por um instante sobre seu humilde trabalho,  numerosos sinais de uma inteligência perspicaz. Lembre-se dos magníficos esforços em direção à luz feitos por galhos contrariados, ou a luta criativa e valente das árvores em perigo.”

E Maeterlinck narra o drama de uma grande árvore situada à beira de um precipício, cuja pedra de apoio caíra, mas que se sustentava miraculosamente lançando novas raízes ao solo para evitar o pior. Espetáculos como esse são relativamente comuns nas margens dos rios atacados de erosão. 

Depois de discutir a questão da inteligência dos vegetais e dos insetos, Maeterlinck aborda em poucas palavras um tema central da filosofia esotérica:

“Mas que pouca importância tem, no fundo, a questão da inteligência pessoal das flores, dos insetos ou dos pássaros! Que se diga, a propósito da orquídea como da abelha, que é a Natureza e não a planta ou a mosca que calcula, combina, adorna, inventa e raciocina. Que interesse pode ter para nós essa distinção?”

Na verdade - acrescenta Maeterlinck - também os conhecimentos humanos fazem parte da natureza. Nossas pequenas inteligências pessoais são parcelas de um conjunto maior: “Todos os nossos motivos arquitetônicos e musicais, todas nossas harmonias de cor e de luz, etc., são tomadas diretamente da Natureza”. 

Sabendo disso, o bom passeador caminha ou pedala em harmonia com o cosmo, tanto na avenida de uma grande cidade como na beira do mar ou na trilha de um bosque.  Ele percebe a unidade da vida e se reconhece como um pequeno ser participante da grande inteligência universal. Por esse motivo, o caminhante sente que nada tem a temer do passado, do presente ou do futuro. Ele vê que, no fundo, a paz comanda a vida - não só aqui e agora, mas também em todas as partes, e sempre.

                              


Carlos Cardoso Aveline 


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