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sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 CAMINHO QUE LEVA PARA DENTRO DE SI

UM TEMPO PARA SI PRÓPRIO

Nietzsche dizia que caminhar ajuda a encontrar as ideias, a descobrir-se a si mesmo. Presentearmo-nos com um momento de solidão nos permite ordenar os pensamentos, questionar sobre a vida e sobre o que realmente desejamos. É nosso momento de recolhimento, nosso espaço de criatividade.

É importante reservar uma parcela do dia para nós mesmos, não só para nos cuidarmos, mas também para estar aqui e agora, relaxar e evitar que algumas situações nos oprimam. Necessitamos de espaço para fugir da confusão e pensar, ou , ao contrário, para tirar da cabeça os problemas do dia a dia.

Eckhart Tolle fala do quão complicado pode ser o ruído mental, o fato de estarmos pensando constantemente. Se nossa cabeça está sempre em ebulição, não poderemos desfrutar de um momento de paz nem viver o aqui e agora. Por isso, convém desconectar. Todo o resto esperar alguns minutos.

Afastarmo-nos da confusão, ainda que por pouco tempo, nos devolve a calma e o sentido da existência. Proporciona uma direção para esclarecer nossos planos e atuar de forma certeira. Podemos respirar o oxigênio da solidão quando estamos ao ar livre, em um café ou em qualquer outro lugar que possamos imaginar. Precisamos nos desconectar por alguns instantes do mundo e nos concentrar em nós mesmos. Você irá descobrir que a solidão é curativa e libertadora. Se reservar uma pequena parte do dia para si mesmo, deixará de ser sentir perdido.

A MUDANÇA COMEÇA DENTRO DE NÓS

Uma característica muito comum entre as pessoas que se queixam da inércia da vida é confiar a mudança a agentes externos. Há quem espere um golpe de sorte ou uma ajuda que jamais chegará. Outros desejam mudar o mundo e acabam paralisados diante do desafio. Tudo o que podemos fazer, tal como aconselha Hesse, é atuar onde temos poder de decisão: em nossa própria vida.

O especialista em comunicação Ferran Ramon-Cortés reflete assim sobre o tema: “Mudar de vida não depende do acaso. Mudar de vida supõe sermos capazes de olhar para dentro de nós e revisarmos todos aqueles aspectos que não funcionam e geram insatisfação. Supõe sermos capazes de reordenar as peças para construir um novo roteiro pelo qual sejamos responsáveis e com qual queiramos nos comprometer.”

Ao assumir isso, só é necessário eleger o momento de começar. E não há melhor momento que agora.

CRIANDO O SEU CAMINHO

Toda existência é uma trilha a ser percorrida por cada pessoa. Ninguém pode fazer isso por nós, porque o caminho não está marcado no mapa; nós o construímos pouco a pouco, passo a passo, com nossas decisões e ações. E, à medida que desenhamos nossa vida, nosso trajeto vai se apagando – devemos deixar o passado para trás -, porque o essencial é avançar, como o barco que deixa seu rastro entre as ondas. Se a embarcação para, o rastro desaparece. Nesse caso, viveríamos uma existência sem rumo.

Além de buscar o amor, o sucesso, a realização o bem-estar, para que nossa experiência como seres humanos seja completa devemos nos encontrar traçando nosso próprio caminho. Porém, estamos tão acostumados a que nos indiquem o caminho, nos marquem os pontos a seguir, nos digam “é por aqui”, que traçar um rumo particular pode nos deixar inseguros.

Faz-se a estrada ao andar e vive-se a vida ao vivê-la, não ao contemplá-la. Se nossa experiência se transforma em algo passivo, que outros estabelecem por nós, nunca conheceremos a liberdade de ser quem realmente somos nem os benefícios da peregrinação ao nosso verdadeiro eu. Não deixaremos nem sequer um rastro próprio, porque iremos atrás da outra pessoa e o rastro dela será o nosso. Por isso é necessário traçar nossa rota, errar, corrigir, sentir medo e superá-lo. Conheceremos a nós mesmos a cada passo, descobriremos nossos sonhos, nossas motivações. E assim teremos a satisfação de criar nossa própria vida.

Peregrinar em direção a si mesmo significa enfrentar sozinho as próprias contradições. É provável que erremos o traçado, que muitas vezes nos assusta e nos paralisa. Mas, se soubermos escutar nossa voz interior, encontraremos novamente nosso caminho em meio à névoa. O antropólogo Carlos Castañeda dizia que, quando nos encontramos diante de uma encruzilhada, escolhemos o caminho que “tem coração”, isto é, o que instintivamente sabemos ser correto.

Em certas ocasiões ficamos em silêncio, imóveis, porque não sabemos o que fazer com nossas vidas. Isso acontece, por exemplo, quando vivemos uma crise emocional, um rompimento amoroso, o fim de uma etapa ou a demissão de um emprego; são situações que alteram o rumo de nossa vida e provocam uma pausa em algum processo. O importante é não deixar parar o motor, não ficarmos na sarjeta, indecisos, sem saber o que fazer. É preciso enfrentar as situações sem se afundar nelas. Nos momentos de crise somos capazes de ver possibilidades que antes nos pareciam invisíveis.

Se tomamos decisões equivocadas para chegar até aqui, não podemos apagar o caminho já percorrido, mas sempre temos tempo de fazer uma curva que nos coloque de volta na trilha de nossos sonhos.

O MESTRE DENTRO DE VOCÊ

O protagonista de O Lobo da Estepe descreve em seu diário o que é para ele uma espiritualidade cotidiana que o aproxima do centro de si mesmo e, portanto, do mistério da existência: “Dias razoavelmente agradáveis, absolutamente suportáveis, passáveis e mornos, de um senhor descontente e de certa idade; dias sem dores especiais, sem maiores preocupações, sem verdadeiro desalento e sem desesperança; dias nos quais se pode meditar tranquila e objetivamente, sem agitação nem medo.”

Encontrar uma rotina agradável, fazer as pazes consigo mesmo, é descobrir o sentido da vida, o nosso lugar no mundo. Quando buscamos fora de nós o que deveríamos encontrar dentro, o fazemos movidos pela insegurança.

Hesse dizia que “tem confiança a pessoa simples, sã, inofensiva, a criança, o selvagem. Nós, que não somos simples nem inofensivos, temos que encontrar a confiança de forma indireta. A confiança em si mesmo é o começo da jornada. O deus no qual devemos crer está em nosso interior.” Negar nossa divindade é ferir o pássaro canoro que habita em nós, é silenciar sua voz para não ouvir o que nos diz nosso ser mais profundo: que cada ser humano é seu próprio mestre.

Em O Lobo da Estepe encontramos esta reflexão sobre o paradoxo de procurar um sentido para a vida, assim como os perigos de confundir o plano espiritual com o material: “A maior parte dos homens não quer nadar antes de aprender. Naturalmente, pois as pessoas nasceram para a terra, não para a água. E, claro, não querem pensar, pois foram criadas para viver, não para pensar. É claro que aquele que pensa tem o que pensar como prioridade e poderá chegar muito longe, mas ele confunde a água com a terra, e cedo ou tarde se afogará.”

VIVER É A VERDADEIRA SABEDORIA

Um conto árabe fala que uma vez existiu um ancião muito sábio. Tão sábio que todos diziam que se podia ver a sabedoria em seu rosto. Certo dia, ele decidiu fazer uma viagem de barco.

Na mesma embarcação viajava um estudante. O jovem era arrogante e mantinha um ar de superioridade. Quando soube da presença do sábio, foi ao seu encontro.

- O senhor tem viajado muito? – perguntou o jovem.

O ancião respondeu que sim.

- E o senhor esteve em Damasco? – voltou a perguntar.

O ancião lhe falou das estrelas que podiam ser vistas da cidade, do belo entardecer, de sua gente. Descreveu os cheiros, o barulho do comércio... e, enquanto falava, o estudante o interrompeu:

- Já percebi que esteve lá, mas estudou na escola de astronomia?

O ancião disse que não. O jovem se surpreendeu e exclamou:

- Então o senhor perdeu meia vida!

O ancião deu de ombros enquanto o jovem continuava falando.

- Já esteve em Alexandria?

O ancião então falou sobre a beleza da cidade, de seu porto e do seu farol, das ruas abarrotadas, de sua tradição...

- Sim, vejo que esteve lá – interrompeu o jovem -, mas... estudou na biblioteca de Alexandria?

O ancião voltou a negar com a cabeça e o jovem exclamou:

- Então o senhor perdeu meia vida!

O sábio ancião não disse nada, mas, depois de um tempo, viu que no outro lado do barco começava a entrar água. Olhou para o jovem e perguntou:

- Estudou em muitos lugares, não é?

O estudante enumerou uma quantidade de escolas e bibliotecas que parecia não ter fim. Quando se calou, o ancião perguntou:

- Em algum desses lugares aprendeu a nadar?

O estudante repassou as dezenas de matérias que tinha cursado nos diferentes locais, mas nenhuma era natação.

- Não – respondeu.

O ancião se levantou e subiu na boda do barco. Antes de se lançar ao mar, disse:

- Pois então perdeu a vida inteira.

Hermann Hesse para Desorientados, de Allan Percy https://www.comprazen.com.br 

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