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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

REFLEXÕES SOBRE 
A IMPERMANÊNCIA


Matias Aires
 
 
*Em nada podemos estar firmes, pois vivemos no meio de mil revoluções diversas: as idades, e a fortuna continuamente combatem a nossa constância. Tudo consiste em representação que começa, não para existir, mas para acabar; menos para ser, que para ter sido. Vimos ao mundo a mostrar-nos, a fazer parte da diversidade dele; parece que as coisas nos vão fugindo, até que nós vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si, e temos em nós uma propensão oculta que, sob a aparência de buscar os objetos, só procura neles a mudança. A inconstância nos serve de alívio, e nos desoprime, porque a firmeza é como um peso que não podemos suportar sempre, por mais que seja leve: e com efeito como podem as nossas ideias serem fixas, e sempre as mesmas, se nós sempre vamos sendo outros? Tudo nos é dado por um certo tempo; em breves dias, e em breves horas se desvanece a razão da novidade, que nos fazia apetecer; fica invisível aquele agrado, que nos tinha induzido para desejar. (p. 101)

*Não temos liberdade para deixar de amar a formosura do mundo, e das suas partes; não temos livre o arbítrio para resistir ao encanto que a natureza esconde nas suas produções. A variedade das cores, o movimento dos animais, o canto das aves, o elevado dos montes, o ameno dos vales, a verdura dos campos, a suavidade das flores, e o cristalino das águas, tudo atrai a nossa admiração, e tudo nos infunde amor. A fábrica do universo é como um retrato da Onipotência; a grandeza do efeito indica a majestade da causa; por isso o amor, ou o louvor da obra, cede em honra do artífice. (pp. 122-123)

*A primeira coisa que a natureza nos ensina é amar; e assim o primeiro afeto que sabemos é aquele mesmo por onde a nossa existência começa a ter princípio. Novos no mundo, porém não no amor, esse se manifesta em nós logo no berço; ali mostramos para alguns objetos desagrado, e inclinação para outros; a uns buscamos com riso, e de outros fugimos com medo; uns nos servem de espanto, outros de divertimento; choramos por alcançar uns, e também choramos por evitar outros; como se o ódio e o amor naquela idade não tivessem outro modo de explicar-se, nem soubessem mais idioma que o das lágrimas. Também não é novo o chorar-se de gosto, do mesmo modo como se chora de pena. (p. 124)

*Vemos confusamente as aparências de que o mundo se compõe: os nossos discursos raramente se encontram com a verdade, com a dúvida sempre; de modo que a ciência humana toda consiste em dúvidas. Ainda dos primeiros princípios visíveis, e materiais, só conhecemos a existência, a natureza não; porque a contextura do universo é em si [tão] unida, e regular em forma, que na ordem das suas partes não se podem conhecer umas, sem se conhecerem todas; por isso todas se ignoram, porque nenhuma se conhece. Só a vaidade costuma decidir sem embaraço, porque não chega a imaginar-se capaz de erro. Os homens mais obstinados são os mais vaidosos, e sempre a porfia vem na proporção da vaidade. (pp. 56-59)

*A nossa tristeza nos faz parecer tudo o que vemos triste; a nossa alegria tudo nos mostra alegre; e o nosso contentamento tudo nos mostra com agrado. Os objetos influem menos em nós, do que nós influímos em nós mesmos. Vemos como de fora as aparências de que o mundo se compõe, por isso não conhecemos o seu verdadeiro ser, nem gozamos delas no estado em que as achamos, mas sim no estado em que elas nos acham. A delícia dos olhos, e do gosto, depende mais da nossa disposição que da sua eficácia; o mesmo que ontem nos atraiu, hoje nos aborrece; ontem porque estava sem perturbação o nosso ânimo, hoje porque está com desassossego; e tudo porque não somos, hoje, o que ontem fomos. O mesmo que hoje nos agrada, amanhã nos desgosta, e os objetos, por serem os mesmos, não causam sempre em nós as mesmas impressões. (pp. 112-115)

*Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes. Continuamente nos vai mudando o tempo. Uma hora a mais é mais uma mudança em nós. A cada passo que damos no decurso da vida, vamos nascendo de novo, porque a cada passo vamos deixando o que fomos, e começamos a ser outros. Cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos deste modo, tanto mais nos fica perto o fim que nos espera. A inconstância, que é um ato da alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza só se conserva e dura porque muda e se move. O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso que lhe deu o supremo Artífice; a própria luz, que é uma bela imagem da Onipotência, toda se compõe de uma matéria trêmula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do movimento. A falta de movimento é o mesmo que falta de vida, e de existência; assim a firmeza é como um atributo essencial da morte. (p. 126)

*É próprio da vaidade o [ato de] dar valor a muitas coisas que não o têm, e quase tudo o que a vaidade estima é vão. Que coisa pode haver que tenha em si menos substância do que certas felicidades que, ponderada a melhor parte delas, consiste, ou em palavras, ou em gestos? A denominação de grande, de maior, e de excelente, e as submissões, que indicam o respeito, fazem uma parte essencial das glórias deste mundo. A primeira não consiste mais do que em palavras; a segunda toda se compõe de gestos. Que importa à felicidade do homem que os outros, quando lhe falam, articulem mais um som que outro, e que nas reverências que a lisonja introduziu se dobrem mais, ou menos? A vaidade nos faz crer [que somos] felizes à proporção que ouvimos esta, ou aquela voz, e que vemos este, ou aquele culto; a vida civil se reduz a um cerimonial composto de genuflexões, e de palavras. (pp. 63-64)

*No desprezo da vida, é onde a vaidade se mostra altiva e arrogante. Os clarins que incitam ao combate não são vozes que a natureza entenda, a vaidade sim; aquela sempre vai com um passo vacilante e trêmulo; esta conduz o peito ardente e furioso. Por mais que se encontrem precipícios, e que os olhos só vejam fogo e sangue, nem por isso desmaia o coração que a vaidade anima. Aquele a quem o escudo da fortuna cobre, e quem marcha resoluto, já pensa que está vendo os faustos do triunfo. Aquele que prostrado já fica agonizando, parece-lhe que expira nos braços da vitória, ou nos da fama. Que felicidade de morrer! A vaidade tira da morte o semblante pálido e horroroso, e só a deixa ornada de palmas e troféus. (pp. 80-81)

*Os retiros e as solidões nem sempre são efeitos do desengano. Na maior parte das vezes são delírios de um sentimento vão, ou furores em que brota a vaidade. Então nos move o fim oculto de querermos que a demonstração da dor nos faça recomendáveis. Fazemos vaidade de tudo quanto é grande: o próprio sofrimento, quando é excessivo, nos lisonjeia; porque nos promete a admiração do mundo. (p. 45)

*De todas as paixões, a que mais se esconde é a vaidade; e se esconde de tal forma que a si mesma se oculta e ignora. Ainda as ações mais piedosas nascem muitas vezes de uma vaidade mística, que quem a tem não a conhece, nem distingue: a satisfação própria que a alma recebe é como um espelho em que nos vemos superiores aos outros homens pelo bem que realizamos, e nisso consiste a vaidade de fazer o bem. (p. 34)

*Travam os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua. A vaidade é um instrumento que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e maiores do que são. A nossa vaidade é o que nos faz ser insuportável a vaidade dos outros; por isso a quem não tivesse vaidade não lhe importaria nunca que os outros a tivessem. (p. 36)

*A vaidade satisfeita, ou ofendida, é a que nos faz buscar a solidão e o retiro, como temerosos de perder a tristeza em que achamos uma felicidade de gênero diverso. Há muitos males em que a vaidade parece [que] se deleita; e ainda sem vaidade a alegria muitas vezes nos soçobra. Não só o excesso, mas ainda a mediocridade dela; porque nunca a gozamos sem alguma perturbação. Um receio insensível de a perdermos basta para oprimir-nos, e por mais que o contentamento nos extasie, nunca nos deixa em um estado de não sentir. A vaidade satisfeita não nos entrega à alegria sem primeiro a temperar, com a mesma equidade com que nunca nos entrega de todo à tristeza. A união do gosto com o pesar não é incompatível, por mais infinita que nos pareça a distância de um a outro extremo. Também a vaidade e a humildade muitas vezes se encontram, se unem e se conservam. (pp. 106-107)

*Quantas dores há, que se formam do gosto, e quantos gostos, que resultam da dor! Essa infinita variedade dos objetos tem a mesma causa por origem. As diferentes produções que vemos, todas se compõem dos mesmos princípios, e se formam com os mesmos instrumentos. Algumas coisas degeneram à proporção que se afastam do seu primeiro ser; outras se dignificam, e quase todas vão mudando de forma à medida que vão ficando distantes de si mesmas. As águas de uma fonte a cada passo mudam; porque apenas deixam a fonte ou rocha de onde nascem, quando em uma parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra diamante. Que coisa é a natureza, se não uma perpétua e singular metamorfose? (pp. 37-38)

 
NOTAS:

[1] “Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens”, Matias Aires, Livraria Martins, São Paulo, 1942, 234 pp., introdução de Alceu Amoroso Lima. Uma segunda edição da obra foi feita pela mesma editora, em 1952. Sobre a vida de Matias Aires, veja-se a obra “Dois Paulistas Insignes”, de Ernesto Ennes, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944, 488 pp. O nome completo desse pensador é Matias Aires Ramos da Silva de Eça, e ele nasceu a 27 de março de 1705. (CCA)

[2] Veja-se, “Vida Líquida”, de Zygmunt Bauman, Ed. Zahar, RJ, 210 pp., copyright 2005, ou “Tempos Líquidos”, do mesmo autor, Ed. Zahar, RJ, 2007, 120 pp. Uma limitação de Bauman – que não tira o valor de suas obras – consiste em supor que os “tempos líquidos” são recentes. No tempo recente, a liquidez apenas se acentua. A vida sempre foi fluída. (CCA) 
 
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