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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A OBSERVAÇÃO HOLÍSTICA 
DA VIDA


O que é a percepção, o que é o ver? Como vocês veem essa árvore? Olhem-na por um momento. Com que visão a veem? É somente uma observação ótica, um mero olhar a árvore com a reação dos olhos, observando a forma, o contorno, a luz sobre a folhagem? Ou quando observam uma árvore, a nomeiam dizendo: “Isso é um carvalho”, e passam longe? Ao nomeá-lo, já não estão vendo a árvore — a palavra nega a coisa. Podem olhá-lo Sem a palavra?

Percebem, então, o modo em que abordam a árvore, o modo em que a olham? A observam parcialmente, com um só sentido, o sentido ótico? A veem, a escutam, a cheira, a sentem, captam o desenho, abarca, a totalidade da árvore? Ou a olham como se fossem diferentes dela? Certamente, quando olham a árvore, vocês não são a árvore. Mas, podem olhá-la sem uma só palavra, com todos os sentidos respondendo à totalidade da sua beleza?

Assim, a percepção significa não apenas observar com todos os sentidos, mas também ver, percebendo se há uma divisão entre si e aquilo que se observa. Vocês provavelmente nunca pensaram em tudo isso. É importante compreendê-lo, porque logo vamos discutir como abordar o medo e perceber tudo o que o medo contém. É importante percebermos como nos aproximamos desse fardo que o homem vem arrastando há milênios. É mais fácil perceber algo fora de nós, como uma árvore, o rio ou o céu azul, sem nomeá-lo — apenas observando-o. Mas, vocês podem observar a si mesmos, olhar para todo o conteúdo da sua própria consciência, o conteúdo total da mente, olhar para o seu próprio ser, o modo como vocês andam, seus pensamentos, seus sentimentos, suas depressões, olhar de tal forma que não haja divisão alguma entre tudo isso e a si mesmo?

Se não há divisão, não há conflito. Onde quer que haja divisão, deve haver conflito; isso é uma lei. Há, então, uma divisão em nós, como a que existe entre o observador e o observado? Se o observador se aproxima do medo, da ganância ou da dor, como se o que tem que resolver, suprimir, compreender ou transcender, fosse algo diferente de si mesmo, então interferem nisso a divisão e todo o esforço e luta consequentes.

[..] Nossas vidas são fragmentadas, divididas, jamais são algo total; nunca temos uma observação holística. Sempre observamos de um ponto de vista particular. Estamos tão divididos internamente, que nossas vidas são em si mesmas contraditórias e, portanto, há um conflito constante. Nunca olhamos para a vida como uma totalidade completa e indivisível. A palavra "todo" (whole) significa ser saudável, são; também significa sagrado (holy). Essa palavra possui um grande significado. Não se trata dos múltiplos fragmentos se integrarem em nossa consciência humana (estamos sempre tentando integrar as várias contradições). Mas é possível olhar para a vida como uma totalidade? Olhar para o sofrimento, o prazer, a dor, a tremenda ansiedade, a solidão, ir ao escritório, ter uma casa, o sexo, o ter filhos — olhar para tudo, não como se fossem atividades separadas, mas como um movimento holístico, como uma ação unitária? Isso é possível de algum modo? Ou somos obrigados a viver eternamente em fragmentação e, portanto, em conflito? É possível observar fragmentação e a identificação com esses fragmentos? Observar, não corrigir, não transcender, não escapar ou reprimir, mas só observar. Não é um problema do que fazer com isso; porque se vocês tentam fazer algo a respeito, então vocês agem a partir de um fragmento e, portanto, estão cultivando mais fragmentos e divisões. Enquanto se vocês podem observar holisticamente, observar todo o movimento da vida como um único movimento, então não só o conflito com sua energia destrutiva chega ao seu fim, mas a partir dessa observação surge uma maneira totalmente nova de abordar a vida. E se se percebe, então se pergunta como há de reunir tudo isso para fazer uma totalidade? E quem é a entidade, o “eu” que precisa reunir todas essas diversas partes e integrá-las? Não é por acaso essa entidade também um fragmento? O pensamento é, em si mesmo, fragmentário, porque o conhecimento nunca é completo em relação a nada. O conhecimento é memória acumulada, e pensamento é a resposta dessa memória e, consequentemente, é limitado. O pensamento nunca poderá produzir uma observação holística da vida.

Podemos, então, observar os múltiplos fragmentos que constituem nossa existência diária e olhar para eles como uma totalidade? Se é um professor, um mestre, ou meramente uma dona de casa, ou um sannyasi que renunciou ao mundo; essas são formas fragmentadas de viver nossa vida diária. Pode-se observar todo o movimento de sua vida fragmentada com seus motivos separados e separativos? Pode-se observar tudo isso sem o observador? O observador é o passado, o acúmulo das lembranças; esse é o passado, e o passado é tempo. O passado olha para essa fragmentação; e o passado como memória é também intrinsecamente o produto de fragmentações anteriores. Pode-se, então, observar sem tempo, sem pensamento, sem as lembranças do passado e sem a palavra? Porque a palavra é o passado, a palavra não é a coisa. Estamos sempre olhando através das palavras, as explicações, que por sua vez são um movimento de palavras.

Jamais temos uma percepção direta. A percepção direta é o discernimento que transforma as próprias células cerebrais. Nosso cérebro foi condicionado através do tempo e trabalha no pensamento. Ele está preso nesse circuito. Quando há observação pura de qualquer problema, há uma transformação, uma mutação na própria estrutura das células.

[...] A observação holística é uma percepção sã, sensata, racional, lógica e total - total (whole) implica sagrado (holy). É possível para um ser humano como qualquer um de nós, que é um leigo, que não é um especialista, é possível para ele olhar para a consciência contraditória e confusa, olhá-la como uma totalidade? Ou deve olhar cada parte separadamente? Quer-se compreender a si mesmo, compreender a própria consciência. Sabe desde o próprio começo que é muito contraditória - quer uma coisa e não quer a outra; diz uma coisa e faz outra. E sabe-se que as crenças separam o homem. Um acredita em Jesus, em Krishna ou algo assim, ou acredita em sua própria experiência à qual se apega, incluindo o conhecimento acumulado durante os quarenta ou sessenta anos de sua vida, o qual se tornou extraordinariamente importante. Um se apega a isso. Reconhece que a crença destrói e divide as pessoas e, no entanto, não pode desistir dela porque a crença tem uma estranha vitalidade. Isso nos dá uma certa sensação de segurança. Alguém acredita em Deus e nisso existe uma força extraordinária. Mas Deus é uma invenção do homem; é a projeção de nosso próprio pensamento, o oposto de nossas próprias exigências internas, de nosso próprio desespero.

[...] Inteligência é a percepção do verdadeiro; essa percepção descarta o falso; vê a verdade no falso e compreende que nenhuma das atividades do pensamento é inteligência. Vê que o pensamento em si mesmo é o produto do conhecimento, o qual é o resultado da experiência como memória, e vê que a resposta da memória é o pensamento. O conhecimento é sempre limitado — isso é óbvio — o conhecimento perfeito não existe. Portanto, o pensamento, com todas as suas atividades e todo o seu conhecimento, não é inteligência. Então, pergunta-se: Que lugar o pensamento tem na vida, considerando que toda a nossa atividade é baseada no pensamento? Tudo o que fazemos tem sua base no pensamento. Todos os relacionamentos são baseados no pensamento. Todas as invenções, realizações tecnológicas, o comércio, as artes, tudo responde à atividade do pensamento. Que lugar, então, o conhecimento e o pensamento ocupam em relação à deterioração do ser humano?

[...] É possível dar uma atenção tão tremenda que nos permita viver uma vida sem registros psicológicos? O registro ocorre somente quando há desatenção. Você está acostumado com seu irmão, seu filho ou sua esposa; sabe o que vão dizer — eles disseram a mesma coisa com tanta frequência! Você os conhece. Quando você diz: "Eu os conheço", é que está desatento. Quando dizemos: "Eu conheço minha esposa", é óbvio que não a conhecemos realmente, porque não é possível conhecer uma coisa viva. É apenas uma coisa morta, a memória, o que conhecemos.

Quando percebemos isso com muita atenção, a dor tem um significado completamente diferente. Não há nada para aprender com a dor. Então há apenas o término da dor. E quando a dor acaba, há amor. Como podemos amar o outro — amar, ter a qualidade desse amor — quando toda a nossa vida é baseada em lembranças, nessa imagem que alguém pendurou na lareira ou colocou no piano? Como podemos amar quando estamos presos em uma vasta estrutura de memórias? A cessação da dor é o começo do amor.


Krishnamurti, A Chama da Atenção
http://pensarcompulsivo.blogspot.com
 

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