A AÇÃO QUE TRANSFORMA
Segunda Parte
Vamos examinar a questão do que fazer em relação ao medo. Se
não resolvermos esse medo, viveremos na escuridão, viveremos em
violência. Uma pessoa que não tem medo não é agressiva, um ser humano
que não tem nenhum sentimento de medo, de qualquer espécie, é
verdadeiramente livre e pacífico.
Como seres humanos, precisamos resolver este problema, porque se não
formos capazes de fazê-lo, não nos será possível viver com retidão. A
não ser que compreendamos o nosso comportamento, a não ser que haja uma
conduta relacionada com a virtude - embora se possa não gostar dessa
palavra - e, a não ser que se esteja totalmente livre do medo, a mente
nunca será capaz de descobrir o que é a verdade, o que é realmente a
felicidade, e se de fato existe um estado intemporal.
Quando há medo, a pessoa deseja evadir-se, mas essa evasão é
completamente absurda e imatura. Temos portanto de encarar este problema
do medo. Poderá a mente estar inteiramente livre dele, não só a nível
consciente, mas também a níveis mais profundos, a nível do chamado
inconsciente? É o que vamos examinar porque, sem compreender
e resolver o problema do medo, a mente nunca poderá ser livre. E só em
liberdade se pode explorar e descobrir. É pois essencial que a mente se
liberte do medo. Vamos então aprofundar isto?
Antes de mais, lembrem-se, por favor, de que a descrição não é aquilo
que é descrito, e não fiquem, portanto, presos na descrição, nas
palavras. A palavra, a descrição é só um meio para comunicar. Mas se permanecermos agarrados à palavra, não se pode ir muito longe. Temos de perceber
não apenas o sentido das palavras, mas também de compreender que a
palavra não é realmente a coisa.
Que é então o medo? Espero que investiguemos juntos. Peço-lhes que não
se limitem a ouvir, sem dar completa atenção; apliquem-se nisto,
vivam-no inteiramente. Porque é o vosso medo, não o meu. Vamos fazer uma
viagem juntos neste complexíssimo problema. Se a pessoa não o
compreender e não se libertar do medo, o relacionamento não é possível:
continuará a ser penoso, cheio de conflito e sofrimento.
Que é o medo? Tem-se medo do passado, do presente, ou de alguma coisa
que possa acontecer amanhã. O medo envolve tempo. Tem-se medo da morte,
que reside no futuro; ou de algo que aconteceu, ou da dor que se sentiu
quando se esteve doente. Reparemos bem nisto. Medo implica tempo:
receia-se, por exemplo, uma dor que já se teve e que pode acontecer
outra vez. Receia-se algo que possa ter lugar amanhã, no futuro. Ou
tem-se medo do presente. Tudo isto envolve tempo.
Psicologicamente falando, se não houvesse ontem, hoje e amanhã, não
haveria medo. O medo é não só do tempo, mas é também produto do
pensamento. Ou seja, ao pensarmos no que aconteceu ontem - e que foi
doloroso - pensamos que isso poderá acontecer outra vez amanhã. É o
pensamento que produz esse medo. O pensamento gera o medo: pensar na
dor, pensar na morte, pensar nos fracassos ou nas realizações, no que
poderá acontecer, no que deveria ser... etc. O pensamento produz medo e dá
vitalidade à continuação do medo. E o pensamento, ao pensar no que ontem
nos deu prazer, sustenta esse prazer, dá-lhe continuidade. Assim, o
pensamento produz, sustenta, alimenta não só o medo, mas também o
prazer. Observai bem isto, em vós mesmos, vede o que realmente se passa
convosco.
Tivestes uma experiência agradável, aquilo que geralmente se chama uma
experiência feliz, e pensais nela. Quereis repeti-la, quer se trate de
uma experiência sexual ou de outra qualquer. Ao pensardes nisso que vos
deu um momento agradável, desejais que esse prazer se repita, que ele
continue. Assim, o pensamento é responsável não só pelo medo, como
também pelo prazer. Pode-se ver a verdade disto, o fato real de que o
pensamento sustenta o prazer e alimenta o medo. É ele que dá origem
tanto ao prazer como ao medo; os dois não estão separados. Quando há
procura de prazer, há necessariamente medo também; os dois tornam-se
inevitáveis, porque ambos são produzidos pelo pensamento.
Reparai, por favor, que não estou persuadindo-vos de coisa alguma. Não
estou fazendo propaganda. Nada disso. Porque fazer propaganda é mentir;
se alguém estiver tentando convencer-vos de alguma coisa, não vos
deixeis convencer. Aquilo de que estamos tratando é algo muito mais
sério do que convencer ou apresentar opiniões e juízos de valor. Estamos
tratando de realidade, de fatos. E os fatos - que se podem observar -
não necessitam de opinião alguma. Não precisamos que nos digam o que o
fato é, ele aí está, se formos capazes de o observar.
Vê-se pois que o pensamento sustenta e alimenta tanto o medo como o
prazer. Queremos que o prazer continue, queremos tê-lo cada vez mais. O
prazer máximo para o homem é saber se existe um estado permanente no
céu, ou seja, Deus; Deus é para ele a mais alta forma de prazer. E, se
se observar, toda a moralidade social - que é realmente imoral - está
baseada no prazer e no medo, no prêmio e no castigo.
Quando se vê este fato real - não a descrição, não a palavra, mas a
coisa descrita - a realidade de como o pensamento dá origem a tudo isto,
então pergunta-se: "Será possível o pensamento terminar?" Parece uma
pergunta disparatada, mas não é. Ontem vimos o pôr do Sol - os montes
imensamente iluminados pelo sol da tarde - e foi uma maravilha, uma
beleza que nos deu uma grande alegria. Poder-se-á apreciá-lo tão
completamente que isso fique terminado, para que o pensamento o não
transporte para amanhã? E poder-se-á encarar o medo, se o medo existir?
Isso só é possível quando se compreende toda a estrutura e natureza do
pensamento. E assim pergunta-se: "Que é pensar?"
Para a maior parte de nós, pensar tornou-se extraordinariamente
importante. Nunca nos damos conta de que o pensamento é sempre velho. O
pensamento nunca é novo, nem nunca pode ser livre. Falar em liberdade de
pensamento é completamente sem sentido, a não ser que isso signifique
podermos expressar o que queremos, dizer o que nos apetece; em si mesmo o
pensamento nunca é livre, porque é a resposta da memória. Podemos
observar isso por nós. O pensamento é a resposta da memória, da
experiência, do conhecimento. O conhecimento, a experiência, a memória
são sempre velhos e assim o pensamento é sempre velho; nunca pode,
portanto, ver nada verdadeiramente novo.
Poderá a mente olhar para o problema do medo sem a interferência do pensamento? Compreendem?
Uma pessoa tem medo. Tem medo do que fez. Esteja pois completamente
atenta a ele, sem a interferência do pensamento - e haverá medo então?
Como dissemos, o medo é originado por meio do tempo; tempo é pensamento.
Isto não é filosofia, nem é nenhuma experiência mística; observai-o
simplesmente em vós próprios e vereis.
Percebe-se que o pensamento tem de funcionar objetivamente, com
eficiência, de maneira lógica e sã. Quando se vai para o emprego, ou
quando se faz seja o que for, o pensamento tem de operar, de outro modo
não se pode fazer nada. Mas, no momento em que o pensamento dá origem ou
sustenta o prazer e o medo, então deixa de ser eficiente. Então gera
desajustamento na relação e causa conflito.
Assim, pergunta-se se poderá haver um findar do pensamento numa direção
e, no entanto, com o pensamento funcionando na sua mais alta capacidade.
Estamos empenhados em saber se o pensamento pode estar ausente quando,
por exemplo, a mente vê o por do Sol em toda a sua beleza. Só então se
vê essa beleza, e não quando a mente está cheia de pensamentos, de
problemas, de violência. Ou seja, se o observarmos no momento de vermos o
pôr do Sol, o pensamento está ausente. Olhamos aquela luz
extraordinária sobre os montes, com grande encantamento, e, nesse
momento, o pensamento não tem nisso lugar nenhum.
No instante seguinte, porém, o pensamento diz: "Que maravilhoso, que
belo foi, quem me dera pintá-lo, escrever um poema sobre ele, gostaria
de contar aos meus amigos esta coisa bonita." Ou ainda: "Gostaria de ver
um pôr do Sol assim, outra vez, amanhã." E nessa altura, o pensamento
começa a criar problemas. Porque então diz: "Amanhã hei de ter esse
prazer outra vez"; e, quando isso não acontece, há dor. É muito simples,
e é exatamente por causa da sua simplicidade que isso passa
despercebido. Todos desejamos ser terrivelmente "inteligentes" - somos
muito sofisticados, muito intelectuais, lemos muito... Mas toda a
história psicológica da espécie humana - não quem foram os reis, ou que
guerras houve, nem todo esse absurdo das nacionalidades - está dentro de
cada um. Quando somos capazes de ler isso em nós mesmos, compreendemos.
Então somos uma luz para nós próprios, então não há autoridade, então
somos realmente livres.
A nossa pergunta portanto é: Poderá o pensamento deixar de interferir? É
esta interferência que produz tempo. Compreendem? Reparemos na morte.
Há grande beleza no que está envolvido na morte, e não é possível
compreender essa beleza se houver qualquer forma de medo. Estamos apenas
mostrando que receamos a morte por ela poder acontecer no futuro, sendo
inevitável. Assim, o pensamento pensa nisso, e fecha-lhe a porta. Ou
então pensa em algum medo que se teve - o sofrimento, a ansiedade - e
que isso poderá repetir-se... Estamos prisioneiros do mal que o
pensamento cria.
Contudo, podemos ver também a extraordinária importância do pensamento.
Quando se vai para o emprego, por exemplo, ou quando se faz alguma coisa
de caráter técnico, tem de se usar o pensamento e o conhecimento.
Percebendo todo este processo, desde o início desta conversa até agora -
vendo tudo isto - pergunta-se: "Será o pensamento capaz de estar
silencioso? Poder-se-á, por exemplo, ver a beleza do pôr do Sol e ficar
completamente envolvido na beleza desse poente sem que o pensamento
introduza aí a questão do prazer?" Reparem nisto, por favor. Se assim
for, a conduta é cheia de retidão. Só quando o pensamento não cultiva o
que acha que é virtude é que a conduta é de fato virtuosa, de contrário
torna-se deformada e sem integridade. A virtude não é do tempo ou do
pensamento; o que significa que ela não é produto do prazer ou do medo.
Assim, agora o problema é: Como é possível, por exemplo, olhar o pôr do
Sol sem que o pensamento teça prazer ou dor à volta disso? Será possível
olhá-lo com tal atenção, com um envolvimento nessa beleza de tal modo
completo que, uma vez visto o pôr do Sol, isso fique terminado, para que
o pensamento não o transporte, como prazer, para "amanhã"?
Estamos comunicando? Estamos realmente? (Participantes - Sim). Bem,
sinto-me satisfeito, mas não sejam tão rápidos dizendo "sim". Porque se
trata de um problema muito difícil. Observar, por exemplo, o pôr do Sol
sem a interferência do pensamento exige uma disciplina tremenda; mas não
a disciplina do conformismo, não a da repressão ou do controle. A
palavra "disciplina" significa aprender - não conformar-se ou obedecer -
aprender acerca de todo o processo de pensar e do lugar que lhe
pertence.
A negação do pensamento necessita de grande observação. E, para
observar, tem de haver liberdade. Nesta liberdade conhece-se o movimento
do pensamento e há então aprendizagem ativa.
Jiddu Krishnamurti
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