SOBRE A ILUSÃO DA SEPARATIVIDADE
Última Parte
A partir do momento em que vós, como
indivíduos, tende resolvido vosso problema particular, tenhais realizado
a verdade por vós mesmos, não mais contribuireis para a crueldade, para
as guerras, para a espantosa tirania e desgraça que imperam no mundo.
É importante que cada indivíduo
compreenda, não os adornos superficiais da vida, mas como, pelo
continuamente deixar de parte a consciência que cria a separação, se
pode ele tornar apercebido dessa realidade interior que reside em todas
as coisas.
Se quiserdes verificar isto, vós, como
indivíduos, tendes que inteiramente vos desapegar de todos os sistemas
tradicionais, convencionados e socializados, de pensamento e de conduta.
Verificareis, então, quão necessário é não confiar, quer em autoridades
de tradição, quer na conduta sistematizada. Antes que possais
compreender a verdade, é preciso que vos torneis plenamente conscientes
de vossa própria separatividade e, assim, de todas as qualidades e seus
respectivos opostos. Isto é, tendes que vos tornar tão consciente de vós
mesmos que todos os vossos desejos, propósitos e conflitos ocultos
sejam trazidos à evidência, examinados e compreendidos por vós. Por vos
tornardes intensamente conscientes, consumireis toda a subconsciência,
pois que, quando estiverdes plenamente cônscios de vossas ações, de
vossos pensamentos e emoções, a hipocrisia cessará de existir, cessarão
as ilusões, os desejos secretos e as fantasias não mais terão
ascendência sobre vós. E então, quando estiverdes assim, limpos e cheios
de propósito, podereis chegar à esse estado em que não existem
pretensas qualidades e, portanto, não há conflitos.
Quando introduzis o elemento pessoal em
vosso julgamento, inevitavelmente perverteis vossa compreensão.
Necessitais distinguir entre o que é pessoal e o que é individual. O
pessoal é acidental, e por acidental entendo eu, as circunstâncias de
nascimento, o ambiente em que fostes criados, vossa educação, vossas
tradições, vossas superstições, vossas distinções de nacionalidade e
classe, e todos os preconceitos que por este processo se desenvolvem. O
que é pessoal somente se relaciona com o acidental, com o que é
momentâneo, ainda que esse momento possa durar o período inteiro de uma
existência. A educação moderna conduz à perversão do pensamento e o
espírito de nacionalidade, de classe, de tradição aumentada pelo medo.
Quando ajuizardes de um fato não o façais partindo do ponto de vista
pessoal: julgai-o sob o ponto de vista do indivíduo, que é o do eu.
Pois as qualidades – as virtudes e os
pecados, o bom e o mau, as alegrias e as tristezas – pertencem a
consciência do “Eu”. Quando estou consciente de mim mesmo, invento
virtudes e pecados, o bom e o mau, o céu e o inferno, para me
proporcionarem equilíbrio em minha luta com os opostos.
Enquanto houver tal consciência da
separação, do eu, da personalidade, não pode existir a realização da
verdade; antes, porém, que possais transcender essa consciência, tendes
que vos tornar plena e vitalmente autoconscientes. Tal significa que
necessitais vos tornar conscientes de vós próprios como indivíduos, não
como uma máquina, não como um mero dente da engrenagem desta rude
civilização onde impera a competição.
Antes que vos possais tornar plenamente
conscientes, e, dessa forma, perder a autoconsciência, há três
condições a passar, relativas à consciência. Na primeira delas, o indivíduo é escravo dos sentidos e de seus anseios. Para satisfazê-los,
torna-se ele simplesmente egoísta, dependendo, inteiramente, para a sua
felicidade, das coisas exteriores, das sensações e excitações e, desse
modo, fica cada vez mais emaranhado na tristeza e na dor. Sua conduta é
encaminhada pelo egoísmo. Toma cada vez maiores responsabilidades sobre
si e torna-se, por essa forma, um simples escravo da ação. Tal homem não
tem tempo nem inclinação para a quietação do pensamento, para a
reflexão, para o exame. Pois a verdadeira reflexão cria a dúvida, as
investigações que levam ao isolamento, ao afastamento, o que ele
cuidadosamente evita.
Depois, vem o segundo estágio em que o
homem se apercebe de suas faltas, de seus defeitos, de suas ilusões, de
suas crueldades. Tornando-se, assim, consciente de sua própria natureza,
tenta desembaraçar-se, livrar-se do domínio dos sentidos e começa a
libertar a mente e o coração. Começa por diminuir, gradualmente as
próprias responsabilidades, sem abandonar sua vida na torrente do mundo.
A ação, nascida da consciência de si mesmo, e na qual existe a
separatividade, é embaraçante, limitadora, pesada; porém a ação, que é o
resultado da liberdade, da individualidade, é libertação.
O indivíduo que possui, agora, o forte
desejo de libertar-se, começa a disciplinar-se. Essa disciplina não lhe é
imposta pelo exterior, não é o resultado da repressão; antes, em
virtude do seu desejo de ser livre, de realizar a verdade, impõe ele a
si próprio uma disciplina oriunda do entendimento – não oriunda do medo,
não coagido pelas circunstâncias sociais ou pelo ambiente. Deseja então
libertar a mente, o coração e, desse modo, viver em harmonia. Impõe a
si mesmo, por isso, uma disciplina maior do que qualquer das disciplinas
provindas do exterior.
Em seguida vem o terceiro estágio de
consciência, em que o homem está completamente senhor dos sentidos,
completamente senhor do seu corpo. Isso não significa ser desenvolvido
muscularmente, nem que o corpo não sinta dores, nem tão pouco que ele
morra; será senhor do corpo, no sentido de não mais se emaranhar em seus
anseios, suas sensações e excitações. Começa ele, então, a libertar-se do medo e das ilusões que ele próprio cria.
Uma vez que estejais libertos das
ilusões, do temor, de todas as outras qualidades, haverá para vós, um
como retiro interior nascido da alegria, retiro nascido não do tédio,
nem do retraimento, nem do intuito de fugir a este mundo de conflito,
porém um retiro interno de alegria em meio da ação.
Quando tal acontecer, a reflexão e a
analise virão dar lugar a uma concentração tremenda; não a concentração
sobre um objeto, mas a concentração em que não há sujeito nem objeto, o
pleno conhecimento em que não há mais contrastes.
Ulteriormente, proveniente deste retiro,
manifesta-se uma harmonia interior, a equanimidade entre a razão e o
amor – o pensamento liberto das fantasias e teorias pessoais, o amor
liberto da especialização, amor que é como o perfume de uma flor. Quando existe esta harmonia, não mais se inquire a respeito de futuro e de passado. Não mais terá lugar a pergunta de – se continuarei “Eu” a viver como entidade separada.
O passado com suas faltas e tristezas,
desaparece, e o futuro, com suas esperanças, anseios e antecipações,
desaparece também: oriunda desses dois termos, nasce a harmonia do
presente, a qual é a realização dessa inteireza que existe em todas as
coisas.
Quando ela for realizada, haverá tranquilidade, haverá a realidade viva da felicidade.
Krishnamurti – Palestra realizada em Londres – 1931 – Do livro: Coletânea de Palestras
Fonte: http://jardimdosmestres.com.br
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