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sábado, 21 de outubro de 2017

NÃO ADIANTA FALAR SOBRE LIBERDADE A UM PRISIONEIRO


Segunda Parte

Pergunta: A virtude não parece ser uma característica proeminente nos seus ensinamentos. Porquê? A vida virtuosa tem um papel tão pequeno assim na realização da verdade?


Krishnamurti: O que quer dizer com virtude? Com virtude quer referir-se a um contraste ao vício? Isto é, chama à coragem, à bravura, uma virtude em contraste com o medo? Em primeiro lugar, tem-se medo, e você acha que tem que desenvolver a ideia de coragem, e portanto procura a coragem; isto é, está fugir do medo, e a este processo de fugir de medo chama-lhe bravura, coragem, que se torna virtude. Para mim, um homem que procura a virtude já não é virtuoso; ao passo que, se começar a descobrir o que causa o medo, não a encobri-lo pela ideia do que você pensa que é a coragem, mas tentar descobrir qual é a causa fundamental do medo, então nessa descoberta da causa você não é nem corajoso nem temeroso, está livre de ambos os opostos.

Afinal, a virtude é apenas o resultado de um falso meio, não é? Para resistir ao meio, vocês têm que ter, hoje em dia, um grande caráter. Pelo menos é a isso que chamam caráter. Isto é, a sociedade criou, ou antes nós ajudamos a criar uma sociedade na qual ser não-possessivo é considerado uma grande virtude. Não é? Estabelecemos uma sociedade onde a possessividade indica uma luta constante com o próximo, consciente ou inconscientemente, uma batalha constante, assertividade, um contínuo eliminar de outros; e chamam a um homem que não quer fazer isso virtuoso, nobre. Para mim isso nada tem a ver com nobreza ou virtude. Se o meio for alterado, se as condições sociais forem alteradas, então ser possessivo ou não-possessivo é a mesma coisa, então não chamam á possessividade nem uma virtude nem uma coisa má. Ao passo que, tal como a sociedade está constituída, afastar-se destes falsos padrões é considerado ou uma virtude ou um pecado. Mas se começarmos a alterar o meio em a mente e o coração estão presos, então toda esta ideia de virtude e pecado têm um significado totalmente diferente; porque, para mim, a virtude não é para ser procurada, para ser obtida, para ser possuída, ou o pecado para ser execrado ou para se fugir dele – seja o que for que signifique pecado.

Portanto, para mim, viver naturalmente exige muita inteligência, não uma vida brutal, selvagem, irrefletida, uma vida primitiva – não me refiro a isso quando uso a palavra “naturalmente”. Só podem viver uma vida natural, plena, espontânea, criativa, inteligente quando compreenderem os falsos padrões e os verdadeiros padrões da sociedade e se tiverem separado deles porque compreenderam o seu significado; em consequência, já não estão limitados por esta procura do oposto a que chamamos virtude.

Colocando a questão com brevidade, quando têm medo procuram coragem, e chamamos a essa coragem virtude; mas, realmente, o que estão a fazer? Estão a fugir do medo. Estão a tentar encobrir o medo com uma ideia a que chamam coragem, mas o medo continuará a existir e a mostrar-se em diferentes formas; ao passo que, se tentarem descobrir qual é a causa fundamental do medo, então a mente não é aprisionada no conflito dos opostos.


Pergunta: Acha que o método da psicanálise, trazer os motivos da mente inconsciente ao conhecimento do consciente, ajudará o indivíduo a libertar a mente dos complexos e das ânsias primitivas e egotistas, e assim permitirá que o seu pensamento o leve a essa felicidade de que fala?

Krishnamurti: Isto é, a mente tem muitos complexos, e a questão é se pode libertar a mente deles pela autoanálise. Não é essa a questão? A mente e o coração têm muitos bloqueios, obstáculos a que chamamos complexos – inconscientes, escondidos. Podemos libertá-los; podemos extirpá-los através de processos de autoanálise, e em consequência libertar a mente da sua opinião egotista e limitada?

Receio que tenham que acompanhar isto um pouco cuidadosamente, porque pode ser a primeira vez que ouvem isto, e podem achá-lo bastante complicado, mas não é. Para mim, a mente só se pode libertar desses obstáculos em plena consciência, quando todo o vosso ser está ativo, consciente. Ora, no processo da auto-análise, o vosso ser total não está a funcionar; somente essa parte de vocês a que chamam mente, pensamento, intelecto. Com essa única parte da mente tentam descobrir os complexos escondidos; enquanto que, digo eu, só podem trazer esses obstáculos escondidos para a ação consciente e plena, quando estiverem plenamente conscientes no presente.

Colocarei a questão de maneira diferente. Ora suponham que têm um complexo de esnobismo. Muita gente o tem. Como vão descobrir? Descobrir, para mim, não reside neste processo de autoanálise; isto é, examinar intelectualmente as ações que tiveram lugar, e assim descobrir esta ideia de esnobismo. Em primeiro lugar, vocês querem descobrir se são esnobes ou não. Não querem alterar isso, mas sim descobrir, não é? Esperem um momento, por favor. Acompanhem isto. Quando o descobrem, então agirão de uma maneira ou de outra. Em primeiro lugar, têm que descobrir se são esnobes, portanto, como vamos descobri-lo? Somente quando tiverem plena consciência, quando estiverem completamente conscientes do que estão a dizer e a sentir no momento de o dizer e de o sentir – não depois que o tenham dito ou sentido. Não é assim? Isto é, se estiverem completamente conscientes do que estão a dizer e do que estão a pensar, então nessa total consciência descobrirão por vocês próprios se são esnobes ou não; não sentando-se e analisando o acontecimento intelectualmente. Sei que estão a surgir daqui inúmeras questões, mas não posso respondê-las todas. Mas se pensarem nisso, verão que desta maneira, estando continuamente alerta, totalmente conscientes do que estão a fazer, trarão o inconsciente, o escondido à consciência total, e assim criarão a perturbação que é necessária, e por intermédio dessa perturbação libertarão a mente desse complexo, desse obstáculo.


Pergunta: Parece considerar a persecução de ideais como uma evasão da vida. Não há uma essência da verdade nos ideais mais elevados?

Krishnamurti: Porque querem ideais? Não digo que não sejam verdades; mas porque os querem? Dizemos que precisamos deles porque não podemos, sem um padrão, uma medida, um ideal, orientar as nossas vidas através das batalhas e lutas constantes da vida. Não é isso? Portanto queremos um padrão, uma medição contínua pela qual julgar as nossas ações na vida diária. O que é que isso indica? Indica que estamos mais interessados no ideal, na medição, que nos conflitos, nas lutas, nos sofrimentos que nos confrontam. Portanto, como são tão grandes, tão contraditórias, tão imensas, estas lutas, estabelecemos ideais como um meio de nos evadirmos deles. Ao passo que, para mim, para compreender o conflito, os infortúnios, os sofrimentos, a mente tem que estar livre para os compreender como eles são, não com uma medida, não com um padrão. Certamente que, quando estão realmente em grande conflito, em grande sofrimento, nesse momento não estão a pensar no ideal, no que deveriam ou não fazer. Estão tão consumidos pelo sofrimento que querem descobrir. Então não estão à procura de um ideal que os faça sair disso. É somente quando o sofrimento diminui, quando se acalma, que se voltam para um ideal que os ajude a sair desse sofrimento.

Para mim, todos os ideais têm que ser um meio de alívio do sofrimento, e, por isso, não podem explicar-lhes a razão do sofrimento. Imaginem uma pessoa típica, e verão que tem inúmeros ideais, crenças, e tenta viver durante todo o dia de acordo com eles, se é que pensa nisso; portanto ela faz da vida uma batalha contínua entre o que são fatos e o que ela quer ser. Agora, se ela perceber, essencialmente, o que são os fatos, e reconhecer o seu significado, então descobrirá a própria raiz do consolo, e em consequência liberta-se destes falsos padrões, destas falsas medidas, que estão continuamente a tentar conformar a sua mente a um padrão específico.
 


Krishnamurti
Fonte:pensarcompulsivo 



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