A ARTE DA SIMPLICIDADE
Ao contrário de grande número de pensadores clássicos – dos quais pouco ou nada chegou diretamente até nós em forma escrita, Lúcio Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) deixou-nos amplo e valioso material sobre sua visão do mundo; para ele a ideia de viver e agir corretamente – sem medo da dor ou apego ao prazer – é um conceito central.
Reproduzo a seguir o trecho exato, incluindo entre colchetes, em itálico, o significado de algumas palavras hoje pouco usadas:
“Daqui a alguns séculos, chegará o momento em que o oceano abrirá as barreiras do mundo: abrir-se-á uma terra imensa. Tétis [a deusa mitológica que é esposa do deus Oceano] descobrirá um novo mundo e Tule [a Islândia] não será mais o ponto mais longínquo da Terra.” [1]
1) Muita gente reclama da falta de tempo, e poucos gostam de envelhecer. Será que a vida humana é demasiado breve?
R:
O tempo que temos não é curto, mas, perdendo grande parte dele, fazemos
com que ele seja. A vida é suficientemente longa para realizar nela
grandes coisas, se a vivermos bem. Mas se alguém passa o tempo no
descanso e nos prazeres, e não se dedica a coisas elogiáveis, quando
chega o seu momento final vemos que o tempo dessa pessoa se foi sem que
ela tenha podido compreender a sua passagem.
O
certo é que a vida que nos foi dada não é breve; nós fazemos com que
ela seja. Não somos pobres de tempo, mas pródigos. Acontece com o tempo
da vida a mesma coisa que com as grandes riquezas. Se elas ficam em mãos
de pessoas insensatas, se dissipam em um instante; e ao contrário, as
riquezas poucas e limitadas, estando em poder de administradores
eficientes, crescem com o uso. Assim, nosso tempo de vida é bastante
grande para os que fizerem bom uso dele.
2) Mas há muita gente que acredita que não tem tempo para ler, meditar ou buscar a sabedoria.
R:
Não acredites naqueles que te disserem que sua profissão os afasta dos
estudos sérios; eles se fazem de ocupados mas não têm tantos
compromissos assim; a dificuldade para esses homens está em si mesmos.
Eu tenho tempo, meu caro, muito tempo; tenho tempo para tudo, e onde quer que esteja disponho sempre de mim. Eu me empresto à atividade profissional, não me entrego
a ela; nem procuro ocasiões para empregar mal meu tempo. Em qualquer
lugar que esteja, dirijo meus pensamentos de acordo com a minha vontade e
medito sobre algum objeto útil. Quando estou com meus amigos, não
renuncio por isso à minha personalidade, e nunca passo meu tempo com
aqueles que se aproximaram de mim por circunstâncias casuais ou pelos
deveres da vida social; passo meu tempo com aqueles que considero
pessoas boas. Quanto a esses, estejam onde estiverem e seja qual for o
século [em que viveram], meu espírito está com eles.
3) Um
dos problemas do estudante moderno é que há uma quantidade enorme de
livros para ler. É bom que haja variedade, por um lado, mas para alguns é
difícil evitar a dispersão mental vivendo diante de tantos estímulos.
Além dos livros há filmes, revistas, jornais, websites, a Internet,
amigos com quem conversar, dezenas de idéias e pouco tempo para
colocá-las em prática.
R:
O primeiro sinal de tranqüilidade interior é saber fixar-se e não
perder-se em divagações estéreis. Mas evita o excesso de leituras,
porque essa infinidade de obras e autores de todo tipo pode significar
superficialidade e inconstância. O estudante tem de dedicar-se a alguns
autores escolhidos, alimentar-se da sua substância, para que alguma
coisa fique gravada na alma.
Estar
em todas as partes é não ir a parte alguma. Quem passa a vida indo de
um lado para outro faz muitos conhecidos e nenhum amigo. Na leitura
ocorre a mesma coisa que nas viagens; a pessoa lê depressa, correndo,
sem se deter em nenhum autor. Um alimento que se engole com tamanha
precipitação não nutre nem tem proveito algum. Não há nada pior, para a
cura de uma doença, do que trocar continuamente de remédios. Uma ferida
não cicatriza quando se troca o curativo a cada instante. A árvore que
se transplanta muitas vezes não adquire vigor. (…) Ler muitos livros
diferentes distrai, mas não ensina. E já que não podemos ler todos, é
melhor contentar-se com ler alguns. (…) Tira das tuas leituras um
pensamento para cada dia; esse é o meu método: leio muito, e tiro algum
proveito.
4) A sabedoria, então, consiste em optar pela simplicidade e contentar-se com aquilo que está ao nosso alcance?
R: Eis aqui a frase das minhas leituras de hoje. É de Epicuro (…): “A pobreza se contenta com pouco”.
Mas, se alguém se contenta com pouco, já não há pobreza. Aceitar a pobreza é ser rico, porque pobre
não é aquele que tem pouco, mas aquele que deseja ter mais do que tem.
De que serve alguém ter caixas cheias de ouro, armazéns cheios de grãos,
possuir muitos rebanhos e rendimentos, se ainda cobiça os bens alheios,
e se pensa menos no que possui e mais no que pode adquirir? E qual é,
portanto, a medida da riqueza? Primeiro, o necessário; depois, o
suficiente.
5) Certos
estudantes das obras de Platão adotam uma visão elitista da filosofia,
como se ela fosse uma atividade reservada para alguns poucos seres
“superiores” e aristocráticos. Você se destaca por sua postura
democrática, na verdadeira tradição da sabedoria socrática…
R:
Se há algo de bom na filosofia é o fato de não olhar para os estratos
sociais: todos os homens, se eles se reportam à primeira origem,
descendem dos Deuses. (…) O Senado não acolhe a todos, e mesmo o
exército recebe com certa relutância até aqueles que depois mandará ao
encontro de fadigas e perigos. Mas a virtude é possível a todos, e todos
somos nobres para ela. A filosofia não recusa a ninguém e não faz
escolhas especiais: brilha para todos.
6) O que é a verdadeira amizade?
R:
Considerar alguém como amigo e não ter tanta confiança nele como em si
mesmo é não saber todo o alcance da verdadeira amizade. Que o teu amigo
seja o confidente de todos os teus pensamentos — mas, antes disso, é
preciso avaliá-lo. A confiança deve vir depois da amizade, porém o
discernimento deve vir antes. É um absurdo confundir as coisas e violar o
preceito de Teofrasto, tendo intimidade com alguém antes de conhecê-lo,
para então romper com ele ao conhecê-lo.
Medita
muito antes de dar tua amizade a alguém. Uma vez dada a amizade, abre a
tua alma a teu amigo, com tanta confiança nele como em ti mesmo.
Vive
de tal maneira que possas revelar todos teus pensamentos até mesmo a
teu inimigo; mas como sempre há coisas íntimas que os costumes sociais
converteram em segredos, derrama na consciência de um amigo todos os
teus pesares, todos teus pensamentos: acredita que ele é fiel, e ele
será. Quantas vezes, de fato, as pessoas ensinam a enganar, temendo ser
enganadas! A desconfiança provoca e autoriza a infidelidade.
7) Como se pode obter o equilíbrio entre movimento, de um lado, e estabilidade, de outro?
R:
O movimento contínuo e o contínuo repouso devem ser igualmente
rejeitados. O tipo de atividade que busca o barulho revela uma alma
inquieta e agitada; e olhar com medo qualquer movimentação não é
aproveitar o repouso, mas é cair na fraqueza e na languidez. Pensa
nessa passagem que li em Pompônio: “Há olhos tão acostumados com a
escuridão, que na claridade enxergam mal.” É preciso combinar os dois
estados: a ação deve vir depois do descanso, e o descanso deve acontecer
depois da ação. Interroga a natureza, e ela te dirá: “fiz o dia e a
noite”.
“Conversas na Biblioteca – Um Diálogo de 25 Séculos”, de Carlos Cardoso Aveline
NOTAS:
[1] Medéia, no final do segundo intermédio, logo antes do segundo episódio. Ver Obras, Sêneca, tradução, estudo e notas de G.D. Leoni, Clássicos de Bolso Ediouro, Ed. Tecnoprint, RJ, p. 91.
[2] Encyclopaedia Britannica, ed. 1967, volume 20, pp. 215-216.
Texto completo: http://www.filosofiaesoterica.com/a-arte da-simplicidade-2/
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