SOBRE UM SABER
MAIS PROFUNDO E VASTO
A verdadeira libertação do homem
consiste essencialmente numa definitiva
segurança baseada na verdade.
O homem totalmente ignorante da verdade também se sente seguro, mas a
sua segurança provém da ausência da verdade. É a sua "infeliz
felicidade", possível somente mercê das trevas em que viver; esse homem
nem sequer suspeita a possibilidade de algo maior para além do estreito
âmbito da sua vivência primitiva. É a tranquilidade da minhoca,
plenamente satisfeita com o húmus que digere no fundo da terra, incapaz
de desejar o voo das aves ou das borboletas.
A ignorância absoluta dá segurança, uma pseudo segurança negativa, que
está aquém da insegurança daqueles que já ultrapassaram esse estágio
ínfimo e começaram a vislumbrar algo para além da estreita barreira de
sua inexperiência. Mas, quando desperta no homem algo das possibilidades
latentes; quando ele principia a adivinhar algo ao longe possibilidades
realizáveis, porém ainda não realizadas — então começa oscilar em sua
alma a misteriosa agulha magnética de profundas potencialidades; então
desperta o dormente heliotropismo do seu desconhecido Eu, que lhe fala
duma luz que existe para além das trevas em que vive...
Então entra esse homem numa "feliz infelicidade", numa
estranha inquietação metafísica, oriunda da distância entre aquilo que
ele é explicitamente e aquilo que ele é implicitamente, entre a sua
conhecida atualidade e as suas desconhecidas potencialidades. Esse homem
começa a crer em algo que ele ainda não viveu, mas poderá viver. Essa
fé não é senão uma longínqua reminiscência da sua origem passada, que
preludia o seu destino futuro.
Essa gestação espiritual é dolorosa e, ao mesmo tempo, prenhe de
promessas alviçareiras — mas esse homem não tem certeza se ela acabará
em triste aborto ou num parto feliz.
No meio das penumbras de dessa insegurança, em que envolvem
invariavelmente o período da crença, começa o homem a tatear em
derredor, em busca de algum ponto fixo nesse mundo movediço; procura
descobrir um rastro no deserto, um caminho em plena
floresta... Encontra ao redor de si homens que seguem na mesma direção e
que parecem ter certa segurança; e descobre que essa segurança lhes vem
do apego a certos dogmas, ritos, tradições, técnicas e sistemas
doutrinários.
E esse crente inseguro encontra certa segurança no apego à convicção de
seus companheiros de jornada, convicção que lhes serve de muletas a que
arrimar-se, ou de andaimes para construir o seu edifício espiritual
incompleto.
O homem primitivo encontra certa segurança na fé e na obediência
incondicional a certas doutrinas e práticas, que os seus chefes
espirituais lhe apresentam, como sendo genuína revelação de Deus.
O grosso da humanidade está, atualmente, nesse plano, na fase de uma
relativa segurança espiritual oriunda da crença num mundo invisível mais
real que este mundo visível.
É cada vez mais impossível estabelecermos um credo-padrão,
igual para todos, tanto para o místico de elevadas experiências divinas
como para sua cozinheira analfabeta cujo cristianismo esteja todo no
catecismo e na escola dominical. A Realidade é, certamente, uma só,
eterna e imutável, mas o contato que os homens têm com a Realidade varia
de pessoa a pessoa, e, como o credo é precisamente o reflexo desse
ponto de contato entre o finito e o Infinito, são necessariamente tantos
os credos quantos os indivíduos.
Seria crueldade tentarmos destruir na alma dos pequeninos essa crença na
Realidade espiritual, que lhes dá orientação e força no meio das trevas
e dos sofrimentos da vida terrestre. Não temos absolutamente, essa
intenção sacrílega. Pelo contrário, recomendamos a todos os nossos
leitores que continuem a trilhar firmemente o caminho de sua fé. Não
contemplamos com desdenhosa sobranceria os viajantes que enchem os
caminhos da fé; sabemos que eles estão dentro da grande lei da evolução,
uma que todo saber experiencial é precedido de um crer obediencial;
ninguém pode saber por experiência própria o que não tenha crido por
obediência a normas alheias; ninguém, pode atingir a plena adultez espiritual sem que passe pela infância e pela adolescência das fases preliminares, seja do entender intelectual, seja do querer volutivo — e esse querer é o crer, é a boa vontade da fé, que admite a Realidade de um mundo invisível antes mesmo de possuir a experiência direta desse mundo.
Crer apenas nesse mundo invisível é estar ainda aquém da misteriosa fronteira, olhando saudosamente para além — saber
é ter cruzado a fronteira entre os dois mundos, é saboreá-lo com
inefável beatitude. Escusado é repetirmos que o que chamamos de saber não é inteligir, entender mentalmente, mas saborear espiritualmente com a alma.
Quem não sabe nem crê nesse mundo de suprema realidade é escravo total,
mas ignora a sua própria ignorância escravizante, e isto lhe dá uma
ilusória segurança — assim como um preso pode sentir-se seguro por
detrás das grades de seu cárcere, se nunca viu outra coisa e considera a
cadeia como o seu habitat natural e necessário.
Quem crê na realidade invisível mas ainda não tem experiência direta da
mesma, está a caminho da libertação, e, mais dia menos dia, será
liberto, suposto que não considere a sua crença como o termo final da
jornada, e sim como um estágio intermediário que deva ser ultrapassado.
Somente o homem que ultrapassou tanto o descrer como o crer,
a treva total da ignorância e penumbra dúbia da crença — esse é
plenamente livre, porque a verdade o libertou da inverdade e da
semi-verdade.
[...] O descrente é um profano da má vontade, o crente e um profano da
boa vontade — somente o sapiente é que deixou de ser um profano e se
tornou um iniciado.
O iniciado, porém não é um "finalizado", um auto-realizado; é um homem
que fez o "início", que abandonou o zigue-zague das suas velhas
oscilações de dúvidas e erros e pôs o pé na linha reta da verdade. E
essa "iniciação" na verdade lhe dá profunda segurança e tranquilidade,
mesmo longe do termo final da sua jornada ascensional. O principal não é
ter atingido a meta — o principal é estar no caminho certo e ter
certeza desta verdade.
A certeza da direção verdadeira nos dá tranquilidade — a distância da
meta mescla de tristeza essa tranquilidade; mas essa sagrada tristeza —
"bem-aventurados os tristes" — não impede a felicidade e se converterá,
um dia, em jubilosa alegria, na proporção que o homem passe da penumbra
da crença para a luz de uma sapiência crescente, do saber inicial para
um saber mais profundo e vasto; porquanto, há muitos graus mesmo na zona
do saber experiencial.
Huberto Rohden - A Grande Libertação
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