SOBRE MUDANÇAS
"Todas as mudanças, mesmo as mais almejadas,
tem sua melancolia. Porque aquilo que deixamos para trás
é uma parte de nós mesmos, e devemos morrer para uma vida
antes que possamos entrar em outra".
(Anatole France)
O que designamos por mudança? Será que a mudança é a mera transferência
do que acumulei para outros campos do conhecimento, para novos
pressupostos e ideologias, projetados a partir do passado? É isso que
costumamos chamar de mudança, não é mesmo? Quando digo que preciso
mudar, penso em mudar para alguma coisa que já conheço. Quando digo que
preciso ser bom, já tenho uma ideia, uma formulação, um conceito do que é
ser bom. Mas isso não é o florescer da bondade. O florescer da bondade
só surge quando compreendo o processo e o acúmulo do conhecimento e
quando desfaço o que sei. Então há possibilidade de uma revolução, de
uma mudança radical.
Mas o simples passar do conhecido para o conhecido não é mudança nenhuma.
Espero estar sendo claro, porque vocês e eu precisamos mudar
radicalmente, de uma maneira espantosa, revolucionária. É um fato óbvio
que não podemos continuar como estamos. As coisas alarmantes que estão
acontecendo no mundo exigem que todos esses problemas sejam abordados a
partir de uma perspectiva totalmente diferente, com uma mente e um
coração totalmente novos. Eis por que tenho de compreender como fazer em
mim essa mudança radical. E vejo que só posso mudar desfazendo tudo o
que já conheço. O desembaraçar a mente do conhecimento constitui em si
uma mudança radical, porque assim a mente fica humilde, e essa mesma
humildade faz surgir uma ação totalmente nova. Enquanto a mente estiver
adquirindo, comparando, pensando em termos do “mais”, ela será incapaz
de uma ação nova. E será que eu, invejoso, ambicioso, posso mudar
completamente, de modo que a mente pare de adquirir, de comparar, de
competir? Em outras palavras, será que a mente pode esvaziar-se a si
mesma e, nesse mesmo processo de auto-esvaziamento, descobrir a ação
nova?
Ou seja, será possível efetuar uma mudança fundamental que não seja o
resultado de um ato de vontade, que não seja o mero resultado da
influência, da pressão? A mudança fundada na influência, na ação, no ato
de vontade, não é mudança nenhuma. Isso é evidente se vocês penetrarem
na questão. E se sinto necessidade de uma mudança completa, radical, em
mim mesmo, tenho de examinar o processo do conhecimento, que forma o
centro a partir do qual acontece toda experiência. Há em cada um de nós
um centro que é o resultado da experiência, do conhecimento, da memória;
e nós agimos e “mudamos” de acordo com esse centro. O próprio ato de
desfazer esse centro, a própria dissolução desse “eu”, desse processo de
acúmulo, gera uma mudança radical. Isso, todavia, exige o esforço do
autoconhecimento.
Tenho de conhecer a mim mesmo tal como sou, e não como acho que devo
ser. Tenho de me conhecer como o centro a partir do qual estou agindo, a
partir do qual estou pensando, o centro formado pelo conhecimento
acumulado, por pressupostos, pela experiência passada, que são coisas
que impedem uma revolução interior, uma radical transformação de mim
mesmo. E como temos um tão grande número de complexidades no mundo
atual, com tantas mudanças superficiais acontecendo, é necessário que
haja essa mudança radical no indivíduo, porque só o indivíduo, e não o
coletivo, pode criar um novo mundo.
Em vista de tudo isso, será possível que você e eu, como dois
indivíduos, nos modifiquemos, não de modo superficial, mas radicalmente,
de forma que haja a dissolução do centro de que emana toda vaidade,
todo o sentido de autoridade, esse centro que acumula ativamente, centro
feito de conhecimento, de experiência, de memória?
Trata-se de uma pergunta a que não se pode dar uma resposta verbal.
Faço-a somente para despertar o pensamento de vocês, sua capacidade
inquisitiva, a fim de que vocês iniciem a caminhada sozinhos Porque
vocês não podem fazer essa caminhada com a ajuda de outra pessoa; vocês
não podem ter um guru que lhes diga o que fazer, o que procurar. Se
alguém lhes disse isso, vocês já não estarão nessa caminhada. Mas será
que vocês não podem começar essa caminhada sozinhos, sem o acúmulo do
conhecimento, que impede o progresso nesse exame? Para examinar, a mente
precisa estar livre do conhecimento. Quando há alguma pressão por trás
desse exame, ele não é mais reto, mas torto e é por esse motivo que é
essencial ter uma mente realmente humilde uma mente que diga “não sei;
vou procurar saber”. E que nunca acumule no processo de exame das
coisas. No momento em que acumulam, vocês passam a ter um centro, e esse
centro sempre irá influenciar o exame. E então? Será que a mente é
capaz de examinar sem acumular, sem assimilar coisas, sem enfatizar o
centro através da autoridade do conhecimento? E, se for capaz, qual o
estado dessa mente? Qual o estado da mente realmente inquisitiva? Sem
duvida é o estado do vazio.
Não sei se vocês já tiveram a sensação do que é estar completa mente só,
sem nenhuma pressão, sem motivação nem influência, sem a idéia do
passado nem do futuro. Estar completamente só é totalmente diferente da
solidão. Há solidão quando o centro de acumulação se sente isolado em
suas relações com o outro. Eu não estou falando dessa sensação de
solidão. Falo do estar só, em que a mente não se acha contaminada porque
já compreendeu o processo de contaminação, que é o acúmulo. E quando a
mente estiver totalmente só — porque, mediante o autoconhecimento, ela
compreendeu o centro de acumulação —, vocês vão perceber que, estando
vazia, livre de influências, a mente é capaz de uma ação não vinculada
com a ambição, com a inveja nem com nenhum dos conflitos que conhecemos.
Por ser indiferente, no sentido de não estar procurando um resultado,
essa mente pode viver com compaixão. Mas esse estado mental não pode ser
adquirido nem desenvolvido. Ele surge por meio do autoconhecimento, por
meio do conhecimento de si mesmo — não de algum eu enorme, maior, mas
de pequeno eu, que é invejoso, ambicioso, teimoso, raivoso, maldoso. O
necessário é conhecer o todo dessa mente que é o seu pequenino eu. Para
ir muito longe, você tem de começar de muito perto, e o perto é você
mesmo, é o “eu” que você precisa compreender. E quando vocês começarem a
compreender, vão perceber que o conhecimento se dissolve, o que deixa a
mente totalmente alerta, atenta, vazia, sem esse centro. E só uma mente
assim é capaz de perceber o que é a verdade.
Krishnamurti
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