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sexta-feira, 26 de junho de 2015

POR QUE SOFREMOS ?

O homem, que já viveu tanto tempo, não conseguiu ainda, com exceção de um ou outro, livrar-se totalmente dessa coisa que chama "sofrimento".

Não importa saber se o sofrimento se acabará ou continuará existente; muito importa saber que, a menos que o resolvamos, a menos que fiquemos completa, profunda e definitivamente livres dele, então, todo movimento, todo pensamento, toda ação continuará envolta em suas sombras, em sua escuridão; por conseguinte, nunca haverá um momento de liberdade, de completo bem-estar, equilibrado e racional, uma taça cheia, transbordante, sem o mais leve sopro de sofrimento.

Todos conhecemos o sofrimento. Há o sofrimento da mente que nunca se preencheu; que é pobre, vazia, insensível; que se tornou mecânica, cansada; que vê uma nuvem e não conhece a beleza dessa nuvem; que nunca foi capaz de ser sensível, de sentir, compreender, viver. Há o sofrimento da "não realização", do "não vir-a-ser", do "não ser". O sofrimento da desilusão da vida. O sofrimento causado pela incapacidade de percebimento, por parte da mente acanhada, inepta, ineficiente, limitada, superficial. O sofrimento da mente que se reconhece estúpida, embotada, indolente e que, por maiores esforços que faça, nunca se torna penetrante, lúcida, viva; isso também gera sofrimento.

Há sofrimento em todas as formas que o home pode conceber ou pelas quais já passou. O sofrimento existe, persistente, constante, vigilante — ou oculto nos profundos recessos de nosso coração, jamais explorados, jamais abertos e devassados. Há o sofrimento do inconsciente do homem que viveu séculos e séculos, sem encontrar a solução para essa coisa, para sua agonia, seus desespero, sua ambição. O sofrimento existe. E nunca entramos realmente em contato com ele; sempre o evitamos; sempre tratamos de fugir, de várias maneiras, pelas vias de nossas esperanças, de teorias e ideias verbais, intelectuais, as mais variadas. Nunca entramos diretamente em crise com o sofrimento, enfrentando-o face-a-face, assim como também nunca entramos em crise com o tempo. Temos de levar o tempo a uma "crise", mas nunca nos confrontamos com o problema do tempo em seu aspecto total.

Nunca exploramos essa coisa extraordinária e dolorosa, chamada "sofrimento"; e não podemos explorá-la, se a evitamos. É o que se precisa perceber em primeiro lugar; que não devemos evitá-la. Evitamos o sofrimento por meio de explicações, de palavras, de conclusões e fórmulas, ou da bebida, dos divertimentos, dos deuses, do culto. A mente que deseja de verdade compreender e colocar fim ao sofrimento, deve deter completamente toda espécie de fuga. Esta é uma das nossas maiores dificuldades, porquanto temos todo um sistema de fugas, um complicado sistema de fugas. A própria palavra "sofrimento" é uma fuga do fato real... Para poder enfrentar o tempo, compreender essa coisa chamada "sofrimento" — todas as suas fugas, os deuses, as bebidas, as diversões, o rádio, tudo deve acabar.

Visto que o sofrimento é pensamento, e o pensamento é tempo, deveis compreender o tempo. Há o tempo do relógio — ontem, hoje e amanhã. O sol se põe e o sol nasce — o fenômeno físico. O ônibus sai a uma certa hora, e o trem parte na hora marcada; é esse o tempo do relógio, o tempo cronológico. Mas, existe outro "tempo"? Faça a você mesmo esta pergunta: "Há outro tempo, além do tempo cronológico?" 

Há: o tempo compreendido como duração, separado do tempo cronológico, do tempo do relógio. Há duração, a continuidade da existência — eu fui, eu sou, eu serei. As memórias, as experiências, as diferentes ansiedades, temores, esperanças — tudo isso está na esfera do tempo entendido como "passado". E esse passado, que é psicológico, que é memória, essa carga de ontem, com todas as suas experiências, eu a estou transportando hoje; a memória está transportando hoje, memória essa que está identificada, pelo pensamento, como "Eu". Se não houvesse memória, se não houvesse identificação com aquela memória de que nasce o pensamento, não haveria nenhum "centro", ou seja "Eu", a transportar aquela carga de dia para dia.

Temos, pois, o tempo marcado pelo relógio. E há o tempo psicológico; mas, este tempo é válido? É o tempo verdadeiro? O tempo não é o intervalo existente entre as ações? Quando há ação espontânea, real, não há, com efeito, tempo. Está esquecido do passado, do presente, do futuro, quando está vivendo naquele estado de ação. Mas, quando a ação procede do passado,você introduz  o tempo na ação.

O que o orador está fazendo é levar o tempo a uma "crise". Pois estamos habituados a servir-nos do tempo como meio de fuga. Ou, também, temos nos servido do tempo como "o presente único", "o agora", tratando de tirar da vida o melhor proveito, agora — com todos os seus desesperos, agonias, ansiedades, temores, esperanças, alegrias. Dizemos: "Só temos poucos dias de vida, e vivamos com tudo o que a vida oferece, tirando dela o melhor partido". É o que fazemos, e o mesmo têm feito todos os filósofos. E todos os que têm inventado teorias têm, também, um medo intenso da morte.

A mente que está em ação pode existir sem o tempo... A mente que está em ação com uma ideia, um motivo, uma finalidade, uma fórmula, está enredada no tempo; sua ação, por conseguinte, não se completa e, portanto, dá continuidade ao tempo. Como sabe, o tempo para nós não é só a duração psicológica, mas também a continuidade da existência. Serei isto futuramente — amanhã ou no próximo ano. Esse "ser futuramente" está condicionado não só ao ambiente, à sociedade, mas também à reação a tal condicionamento, tal sociedade — reação que consiste em dizer: "Serei isto e o alcançarei futuramente". Quando uma pessoa diz: "Se hoje não sou feliz, se não sou rico interiormente, profunda, ampla, inexoravelmente rico eu serei " — essa pessoa está na armadilha do tempo. O homem que pensa que será alguma coisa e está se esforçando para alcançar o que será, para esse homem a maior aflição é o tempo.
inexoravelmente

"inexoravelmente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/inexoravelmente [consultado em 26-06-2015].
inexoravelmente

"inexoravelmente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/inexoravelmente [consultado em 26-06-2015].rico eu o serei" — essa pessoa está na armadilha do tempo. O homem que pensa que será alguma coisa e está se esforçando para alcançar o que será, para esse homem a maior aflição é o tempo.

É possível a mente achar-se sempre em ação, diretamente, espontânea e livremente, de modo que nunca tenha um momento de tempo? Porque o tempo é pensamento periférico. Todo pensar é periférico, marginal — todo. Pensamento é reação da memória, da experiência, do conhecimento, acumulados; daí procede o pensamento, a reação ao passado. O pensamento jamais pode ser original... O original não pertence ao tempo. Por conseguinte, para descobrir o original deve a mente estar inteiramente livre do tempo — do tempo psicológico; da duração; da ideia de "serei", "alcançarei", "tornar-me-ei".

Assim como o bancário deseja tornar-se gerente do banco, e o gerente aspira a ser diretor, assim como o vigário aspira a ser arcebispo, assim como o sanyasi deseja "vir a ser", alcançar, no final de tudo, isto ou aquilo — assim também nós adotamos perante a vida a mesma atitude. Abeiramo-nos do viver de cada dia com a ideia de realização e, assim, psicologicamente, abeiramo-nos da vida, dizendo "devo ser bom", "devo fazer isto", "devo vir a ser..." É a mesma mentalidade, a mesma ambição; portanto, introduzimos o tempo em nosso viver. Nunca questionamos o tempo. Nunca dizemos: "É mesmo assim? Daqui a dez anos, serei feliz, inteligente, vigilante, imensamente rico interiormente, e então só uma coisa existirá?" Nunca questionamos o tempo; aceitamo-lo, como temos aceito tudo o mais: cegamente, estupidamente, sem pensar, sem raciocinar.

Por isso eu digo que o tempo é veneno, que o tempo é um perigo contra o qual devemos estar sumamente precavidos, perigo tão vivo como um tigre. Devemos estar consciente, a cada minuto, de que o tempo é um veneno mortal, uma coisa fictícia. Estamos vivendo hoje; e não podemos viver hoje, de modo completo, com riqueza, plenitude, com extraordinária sensibilidade à beleza, à graça, se vimos com toda a carga de ontem.

Como já sabemos, a maioria de nós traz o passado para o presente, e o presente se torna mecânico. Se observar a sua própria vida, verá quanto é mecânica! Funciona qual uma máquina, como uma imitação imperfeita do cérebro eletrônico. Porque aceita o tempo e com ele se acostumou. Ora, há uma vida fora do tempo, quando se compreende o passado, que é só memória e nada mais.

A memória, na forma de conhecimento, de acumulação de experiências, de coisas que o homem vem juntando há milhões de anos — a memória é o passado, consciente ou inconsciente; nela estão depositadas todas as tradições. E com tudo isso vem para o presente, para o agora e, por conseguinte, não está, absolutamente, vivendo. Está "vivendo" com as lembranças, as cinzas frias do ontem. Observe você mesmo. Com essas cinzas frias da memória, inventa o amanhã: um dia, serei não-violento; hoje sou violento, mas irei limando essa minha "grata" violência e, um dia, hei de ser livre, não-violento. Que infantilidade! — É uma ideia que aceitou e, portanto, não pode desprezá-la. E há homens que dizem tais absurdos! E você os trata como grandes homens; porque está também aprisionado no tempo, tal como eles. Esses homens não os estão libertando, fazendo-os enfrentar o fato — o tempo — isto é, trazer para o presente o passado inteiro e levá-lo a uma "crise".

Sabe o que acontece quando se vê numa crise — numa crise real, não uma crise inventada, uma crise verbal, de ideias e teorias? Quando se encontra, de fato, em presença de uma crise, que lhe exige atenção integral e "atenção integral" significa: atenção com sua mente, seus olhos, seus ouvidos, seu coração, seus nervos, todo o seu ser — sabe o que acontece? Não existe, então o passado; não há então ninguém para dizer-lhe o que deve fazer; e, então, dessa extraordinária atenção, vem a espontaneidade; e, nesse estado não existe o tempo. Mas, no momento em que começa a pensar a respeito da crise, no momento em que começa a pensar, todo o passado entra em ação. O pensamento é reação do passado — associação, etc. E verifica-se, nesse momento, o começo do tempo e do sofrimento.

Assim, pois, cumpre compreender a natureza do tempo e o significado do tempo. Com a palavra "compreender" quero dizer "ter vivido" com a coisa, tê-la percebido; não ter aceito nenhuma teoria nem explicação verbal; não ter fugido por meio do passado, porém, ter investigado, de fato, o fenômeno do tempo psicológico. Fazendo-o, levará o tempo a uma "crise"; essa crise lhe torna então sobremaneira atento e, por conseguinte, a mente fica num estado de ação. Fica atuando sempre, porque já se livrou daquele estado de "passado e futuro" — do tempo. E nesse estado, em que a mente não está interessada no passado nem no futuro, tem o presente uma significação diferente. Isso não é teoria, e não se trata de um estado de desespero. Por conseguinte, a cessação do sofrimento é a cessação do pensamento, e a cessação do pensamento é o começo da sabedoria. A cessação do sofrimento é sabedoria.



 Krishnamurti




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