LAVAI OS PÉS UNS AOS OUTROS
A tocante cena do lava-pés encerra o mais profundo mistério da
verdadeira redenção do homem. O seu sentido último vai muito além da
ética da humildade que estamos habituados a ouvir nos sermões comuns das
igrejas. É a apoteose da redenção
pelo querer-servir.
A humanidade está dividida em dois grupos nitidamente distintos: os que
querem ser servidos – e os que querem servir. A primeira parte é
enorme, a segunda é pequena em quantidade,
embora grande em qualidade.
Para
que um homem passe da doença crônica do querer-ser-servido para a
vigorosa sanidade do querer-servir, é necessário que deixe de ser
profano e se torne um homem sacro. No homem profano, devido à sua
cegueira, predomina o pequeno ego físico-mental – no homem sacro, graça à
sua vidência, triunfa o grande Eu espiritual.
O homem profano
se sente bem, importante, poderoso, quando está sentado sobre um trono,
dando ordens, e muitos de seus semelhantes jazem ao pé do trono,
cumprindo ordens. Nisto é que ele vê força, riqueza grandeza – quando,
na realidade, tudo isto é sintoma de fraqueza, pobreza, pequenez.
Quem pode alegremente servir mostra que é forte, rico, pleno, exuberante. Deus não tem necessidade de receber nada, mas dá tudo porque é inesgotável Plenitude. Quanto mais o homem se aproxima da Divindade doadora, tanto mais gosta
de dar e servir e tanto menos se interessa por receber e ser servido.
Em última análise, toda a redenção consiste em que o homem extinga em
si todo e qualquer desejo e necessidade de querer-ser-servido e eleve ao
máximo a jubilosa vontade de querer-servir; porque aquilo é sinal de
egoísmo estreito, ao passo que isto é prova de vasto universalismo e
amor. Ora, todo egoísmo é irredenção, como todo amor é centralização
unitiva.
No plano do ego personal domina a política de “ter”, e
está ausente a filosofia do “ser”. O profano considera reais os objetos
que ele tem ou pode ter, e por isso gasta a vida toda a correr atrás
desses objetos, que, devido ao seu inerente pendor centrífugo, fogem do
homem profano, por ser negativo. Na verdade, porém, nenhum objeto tem
realidade intrínseca em si mesmo; todos eles são apenas realizados, isto
é, possuem realidade extrínseca, vinda de fora deles. Nenhum objeto tem
realidade original, autônoma, mas apenas um reflexo no espelho,
heterônomo. Ora, ninguém pode agarrar e possuir solidamente um reflexo
no espelho.
É absolutamente impossível que eu tenha hoje o que
não tive ontem e não terei amanhã. Um “ter” entre dois “não-teres” é
intrinsecamente impossível, porque contraditório em termos. Só tenho de
fato o que posso ter para sempre. Esse “ter-para-sempre” porém, não faz
parte dos objetos quantitativos, dominados pelas ilusórias categorias de
tempo e espaço. O único “ter” verdadeiro é o “ser”. Em última análise,
eu só “tenho” o que “sou”; só posso “ter” o meu verdadeiro “ser” com
todos os atributos a ele inerentes, como verdade, justiça, amor,
benevolência, ou seus contrários.
O profano é um caçador de
sombras e sonhador de sonhos; corre sem cessar atrás de grandes e
pequenos nadas, como se fossem algo, e, enquanto não se curar dessa
estranha alucinação, não será liberto da sua velha escravidão, porque só
a verdade é que é libertadora.
É esta ilusão a última razão
por que o profano tem a irresistível necessidade de receber e de ser
servido, porque isto dá uma força ilusória à sua fraqueza real, assim
como álcool, cocaína, maconha e outros estimulantes e entorpecentes
geram a sensação de uma força que, de fato, não existe nesses indivíduos
viciados. Todo profano é um viciado, porque sedento e ébrio de objetos.
Querer receber e ser servido é vício. Só a experiência da verdade é que
cura o homem dessa doença crônica e aguda e lhe dá vigorosa saúde.
Quando Jesus ajoelhou aos pés de seus discípulos para lavá-los e
enxugar com uma toalha, prestou-lhes, segundo a opinião humana, serviço
de escravo. No Oriente, onde se usam, geralmente, sandálias em vez de
sapatos fechados, o viandante entra em casa com os pés cobertos de pó;
imediatamente, um dos servos acorre com uma bacia de água, desata o
calçado e lava os pés do hóspede, enxugando-os com uma toalha. As
sandálias ficam do lado de fora.
Para a humanidade profana dos
nossos dias, esse servir é um sinal de inferioridade – assim como o
ser-servido é considerado quase universalmente como prova de
superioridade. Entre verdadeiros iniciados e homens sacros reina a ordem
inversa, porque eles se aproximaram tanto do Servidor Doador Universal
que refletem espontaneamente os atributos de mesmo.
“Os
príncipes deste mundo – disse Jesus - dominam sobre seus súditos, e por
isto são chamados grandes; entre vós, porém, não há de ser assim, mas
aquele dentre vós que quiser ser grande seja servidor de todos.”
Aqui está o teste da verdadeira iniciação cósmica; dar e servir em vez
de querer receber e ser servido. O verdadeiro iniciado, porém, não vê
nesse dar e servir algo como virtude ou heroísmo, mas sim como a
expressão da mais simples das verdades e realidades. Ele não é
“virtuoso”, no sentido usual do termo, mas é “sábio”, por ser um grande
“compreendedor” da suprema verdade.
O Nazareno deu a seus
discípulos uma ordem simbólica, mandado que lavassem os pés uns aos
outros, quer dizer, que prestassem uns aos outros serviço espontâneo e
voluntário, impelidos pelo amor compreensivo, e não compelidos por
alguma lei externa.
Mahatma Gandhi tinha
entre seus discípulos uma turma que ia de cidade em cidade, de aldeia
em aldeia, fazendo limpeza pública nas ruas e até nas privadas. Certo
dia, um viajante encontrou um passageiro de trem a lavar a privada;
olhou para o desconhecido e disse: “Você, de certo, é da turma de
Mahatma Gandhi”. Sorriu-se o servidor espontâneo e continuou a
trabalhar. Era de fato da “turma de Gandhi” – porque era Mahatma Gandhi
em pessoa,
ele, a “grande alma” da Índia.
Para poder servir
espontaneamente, sem perigo de criar complexo de heroísmo ou
virtuosidade, deve o homem ser, de fato, uma “mahatma”, uma “grande
alma”; porque as almas pequenas só querem ser servidas. Quem não é ainda
remido
da velha escravidão do seu ego não pode entrar
na “gloriosa
liberdade dos filhos de Deus”.
Jesus, porém, supõe que seus verdadeiros discípulos
sejam grandes almas..."Lavai os pés uns aos outros"...
“Quem quiser ser grande, seja servidor de todos”...
Huberto Rohden
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