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domingo, 15 de dezembro de 2019

PEDAÇOS DE SABEDORIA


Momentos com Krishnamurti

Um dos empecilhos ao viver criador é o medo; e a respeitabilidade constitui manifestação desse medo. Os indivíduos respeitáveis, moralmente agrilhoados, não conhecem o integral e o verdadeiro significado da vida. Estão encerrados dentro dos muros da sua virtude.

Ora, pode a mente permanecer, de fato, (…) no estado em que ela diz: “não-sei”? (…) Pode a mente ficar livre das lembranças, e todas as acumulações do passado? Se vos abstiverdes de teorias e especulações, de asserções positivas ou negativas, então só podeis achar-vos num estado de “não-saber”. Se a mente puder permanecer nesse estado, ela não estará (…) então livre do passado? (…) Todo movimento da mente é reação do passado, e só quando está em silêncio, imóvel, tem a mente a possibilidade de ser pura, nova e totalmente lúcida.
 
Nosso problema, pois, é o de encararmos o fato sem avaliação; e isso requer um profundo senso de humildade. Mas ninguém, dentre nós, é humilde; todos sabemos, (…) temos valores, nunca nos chegamos ao fato sem o nosso saber. “Não saber” é um estado de humildade, (…) O saber não está em nenhuma relação com a sabedoria. A sabedoria vem à existência quando não há saber, isto é, quando a mente (…) não é a entidade que avalia, (…) julga, (…) compara. (…)
 
(…) O homem que diz “eu sei” é o mais destrutivo dos entes humanos, pois, na verdade, ele não sabe. Que sabe ele? Se uma pessoa está cônscia, ciente, de se ter transformado, ela não está transformada.

Nestas condições, pode a mente achar-se num estado de não-conhecimento? E não deve a mente estar sempre nesse estado? Positivamente, o homem que diz “eu sei”, não sabe. Sabe, tão somente, as coisas que ocorreram e estão acabadas e, por conseguinte, ele está carregado de lembranças. Entretanto, o homem que diz “não sei” acha-se num processo de investigação, de constante indagação, e sua mente, por conseguinte, nunca acumula, para reagir, depois, de acordo com essa acumulação.

(…) Só quando completamente livre de esforço, pode a mente achar-se em paz, que é, na verdade, um estado extraordinário, mas que pode ser alcançado por qualquer um que a isso se aplique de coração e com toda a atenção. A mente que não está lutando, tentando “vir a ser” alguma coisa, social ou espiritualmente, a mente que está reduzida a “nada” – só ela pode receber “o novo”.

Um homem que vive conforme a crença não está vivendo verdadeiramente; é limitado em suas ações. Mas o homem que, por entender, está realmente livre da crença e do fardo do conhecimento, para ele há êxtase, (…) há verdade. Acautelai-vos do homem que diz: “eu sei”, porque ele só pode saber o estático, o limitado, nunca o vivo, o infinito. (…)

Sempre nos aplicamos a uma coisa armados de saber, de conclusões já formadas, e com esses padrões de pensamento atravessamos a existência; o saber, por conseguinte, se torna um obstáculo ao descobrimento da Verdade. Se desejo conhecer a verdade a respeito de mim mesmo, tenho de descobrir a mim mesmo, a cada minuto, exatamente como sou (…)

Assim, pois, a mente que quer descobrir o que é verdadeiro, tem de estar livre do saber. (…) Nossas mentes nunca estão livres, para serem tranqüilas, porque estão repletas de conhecimentos, de saber. Sabemos demais, mas na verdade nada sabemos sobre coisa alguma, e com essa imensa carga às costas, queremos ser livres. (…)

Ora, por certo, o saber é um empecilho, um obstáculo ao descobrimento do que é verdadeiro. A Verdade tem de ser uma coisa viva, totalmente nova a cada segundo, e como pode a mente que acumula saber, conhecimentos, compreender o que é desconhecido? Chamai-o Deus, chamai-o Verdade (…)

Nessas condições, pode a mente pôr-se num estado de “não saber”? Porque só então a mente pode investigar, e não quando diz “sei”. Só a mente que é capaz de estar num estado de “não saber” (…) está livre para descobrir a realidade. (…) O saber nos dá força, importância, um centro ao redor do qual o “eu” pode manter-se ativo. A mente que não recorre ao saber, que não está vivendo na memória, que está totalmente vazia do passado, morrendo para qualquer espécie de acumulação, momento a momento – só essa mente pode achar-se num estado de não saber (…)

A anulação do conhecimento é o começo da humildade. Só a mente humilde pode compreender o que é verdadeiro e o que é falso e, assim, evitar o falso para seguir o verdadeiro. Mas a maioria de nós quer abeirar-se da vida com o conhecimento (…) Esse conhecimento se torna nosso background, nosso condicionamento; ele nos molda os pensamentos e faz-nos ajustar-nos ao padrão do que foi.

Se desejamos compreender qualquer coisa, devemos chegar-nos a ela com humildade; e é o conhecimento que nos faz “não-humildes”. Não sei se já notastes que, quando sabeis, deixais de examinar o que é. Se já sabeis, não estais vivendo, absolutamente. A mente que desfaz tudo o que acumula (…) só essa mente é capaz de compreensão; pois, para a maioria de nós, o conhecimento se torna a autoridade, o guia que nos mantém dentro do santuário da sociedade, dentro das fronteiras da respeitabilidade. (…)

Porque é a autoridade do conhecimento que nos dá arrogância, vaidade, e só pode haver humildade quando essa autoridade é expulsa, não em teoria, porém realmente, a fim de que possa aplicar-me a todo esse complexo processo da existência com uma mente que não sabe. (…)

Psicologicamente, terminar o conflito é “ser nada”; e a maioria de nós tem medo de enfrentar o “ser nada” – literalmente nada. Mas, afinal de contas, que sois vós? Que são todos os VIPs – a gente muito importante? Tirem-se-lhes os títulos, as posições, as condecorações, todas essas bugigangas, e eles ficam reduzidos a nada. (…)
 
(…) Mas, o estar cônscio de ser nada significa ser alguma coisa. Ser nada é um estado que não pode ser provocado; esse estado só se conhece havendo amor. Mas o amor não é uma coisa que possa ser procurada; ele vem quando há em nós uma revolução interior, quando o “eu” já não é importante, já não é o centro da nossa existência.

Quando um guru diz que sabe, ele não sabe. Quando um guru oriental, ou um homem do ocidente, diz: “Eu alcancei a iluminação”, então você pode estar certo de que ele não é um iluminado; a iluminação não é para ser alcançada. Ela não é algo que você consegue passo a passo, como se estivesse subindo uma escada. A iluminação não está nas mãos do tempo. (…) A compreensão de “o que é” é imediata; (…)

Só quando, interiormente, sois “como nada”, por serdes um ente livre, encontra-se a possibilidade de não se fazer uso da desigualdade para engrandecimento próprio, para implantar a ordem e a paz. Mas “ser como nada” não é uma simples frase; (…) e isso só é possível quando a mente não está entregue ao “vir-a-ser”.
 
Mas há um “não sei”, um estado de não saber, de significado completamente diferente. Até agora existiram sempre o pensador e o pensamento. Dizeis “não sei”, mas na verdade estais esperando saber. Quando, afinal, o sabeis, o que viestes a saber será acrescentado aos conhecimentos que já acumulastes, e estareis apto a responder prontamente, na próxima vez que vos fizerem a mesma pergunta. Assim, vosso “não sei” é, realmente, processo de acumulação.

Ora, há um “não sei” que é completamente diferente, no qual não há pensador nem acumulação de pensamento. Trata-se de um fato: não sabeis. E, para a maioria de nós, esse estado de não saber é um tanto assustador. Realmente nunca dizemos “não sei”; há sempre essa vaidade de saber, o sentimento de “superior e inferior”, etc. Mas quando dizemos “não sei”, sem nenhuma tendência para desejar ou esperar saber, não há então pensador nem pensamento. Esse é um estado de completa negação. Nesse estado de negação, pode-se olhar negativamente o inconsciente, o total conteúdo da consciência. Não há então condicionamento, nem conflito entre pensador e pensamento; por conseguinte, a mente está fresca, jovem, nova, viva.
 
O estado de “nada” tem de ser, naturalmente, um estado inconsciente. Não é um estado consciente. Uma pessoa não pode dizer “sou o mesmo que nada”. Quando uma pessoa tem consciência de que é “nada”, já é alguma coisa. (…) Quando uma pessoa está cônscia de que é virtuosa, torna-se respeitável; a pessoa respeitável nunca poderá achar o que é real. (…)

Só pode haver cooperação quando vós e eu somos “o mesmo que nada”. (…) Que significa esse estado de nulidade? Só conhecemos o estado de atividade do “eu”, (…) egocêntrico. Esse estado, evidentemente, cria malefícios, infelicidade, agitação, confusão e falta de cooperação. (…)

(…) Tendes de começar como se nada soubésseis, pois só assim realizareis um descobrimento fecundo e libertador; só assim encontrareis, com o vosso descobrimento, a felicidade e a alegria. (…)

(…) Afinal de contas, nós nos conformamos porque somos ignorantes e sentimos medo; mas não é um fato que o não-saber é essencial para que se manifeste o desconhecido? (…)

(…) Esse estado de criação só se manifesta quando o “eu”, que é o processo do reconhecimento e da acumulação, deixa de existir; porque, afinal de contas, a consciência como “eu” é o centro do reconhecimento (…) Mas temos medo de ser nada, porque todos desejamos ser alguma coisa. O homem pequeno quer ser um grande homem, o não-virtuoso quer ser virtuoso, o fraco e obscuro aspira ao poder, à posição, à autoridade. (…)
 
Interlocutor: Por que tenho medo de não ser nada?
 
Krishnamurti: Olhe (…) o medo pode ser a causa dessa agressão, porque a sociedade está construída de modo tal que o cidadão que ocupa uma posição de respeito é tratado com grande cortesia, enquanto o homem que carece de posição é tratado a pontapés (Índia) (…) Por que, pois, somos agressivos? É porque temos medo de ser ninguém? (…)

É estranho como ninguém jamais diz: “não sei”. Para que possamos realmente dizer e sentir isso, é preciso haver humildade; mas ninguém admite o fato de nada saber. É a vaidade que busca o conhecimento. (…) Porém, ao reconhecermos a nossa ignorância a respeito de alguma coisa, interrompemos o processo mecânico do saber. (…)

(…) Mas, interiormente (…) queremos ser alguém, na família, num grupo, na sociedade, na nação. Ambicionamos o poder. Não nos contenta ser nada, porque somos arrastados pelo desejo de estimulantes externos, de aparato exterior, porque interiormente estamos vazios – e isso nos horroriza. Por essa razão, vivemos a amontoar posses (…) E é justamente quando nos contentamos em “ser nada”, quando nos contentamos com o que é, o que requer uma compreensão extraordinária de todas as vias de fuga, só então haverá paz.

(…) Precisamos romper o nosso condicionamento e ser como nada. Temos medo de não ser nada, e por essa razão nos evadimos, alimentando assim o nosso temor com a avidez, o ódio e a ambição. O problema não é a maneira de nos defendermos, mas, sim, (…) de transcendermos o desejo de expansão pessoal, o anseio de vir a ser. Só os indivíduos que abandonarem as suas paixões, seus anseios de fama e imortalidade pessoal, poderão concorrer para uma paz e uma felicidade fecundas.

Existe o desejo de ser pessoa importante, mundanamente, espiritualmente. É possível atingirmos e desarraigarmos essa coisa, para nunca mais seguirmos um guia, não termos mais o sentido de nossa própria importância, não desejarmos mais ser alguém (…)? Podemos ser ninguém, mesmo quando a corrente de existência esteja toda a mover-se em sentido contrário e a impelir-nos (…) a nos tornarmos alguém? (…) E é possível nos libertarmos desse espírito de competição (…) instantaneamente (…)?
 
(…) Não sois ninguém; mas quando dizeis que sois budista, sois alguém. Isso vos dá colorido. Consequentemente, o vosso desejo de ser alguém, (…) de identificar-vos com algo que é grande, vos condiciona. Por certo, ser o que é, constitui o começo da virtude; o contentamento é a compreensão do que é.

Vós sois nada. Podeis ter vosso nome e vosso título, propriedades e depósitos nos bancos, podeis ter poder e fama; todavia, apesar de todas essas defesas, sois o mesmo que nada. Podeis não estar perfeitamente cônscio desse vazio, desse nada, ou podeis simplesmente não desejar estar cônscio dele; ele existe, entretanto, não importa o que façais para evitá-lo. (…)

Quanto maior a ostentação exterior, maior a pobreza interior, mas a libertação desta pobreza não é a tanga. A causa do vazio interior é o desejo de vir a ser; e tudo o que fizermos nunca será capaz de encher este vazio. Podeis fugir dele de maneira rudimentar ou requintada; ele continuará, porém, tão perto de vós como a vossa sombra. ( … ) Com suas atividades interiores e exteriores, procura o “eu” enriquecimento, que ele chama experiência

O “eu” não suporta o anonimato; poderá cobrir-se com um manto novo, tomar um nome diferente; a identidade, entretanto, é sua própria essência. (…) Todo esforço do “eu” no sentido de ser ou não ser é um movimento para longe do que é. Separado do seu nome, seus atributos, idiossincrasias e posses, que é o “eu”? (…) Existe ainda o “eu”, se lhe são retiradas as suas qualidades? É o medo de ser nada que impele o “eu” à atividade, mas ele é nada, ele é um vazio.

Se formos capazes de enfrentar esse vazio, de ficar em companhia daquela solidão dolorosa, então o medo desaparecerá completamente e ocorre uma transformação fundamental. Para que isso possa acontecer, precisamos conhecer aquele estado de ser nada, o que não é possível se existe o experimentador. O conhecer o que é, sem lhe dar nome, é que traz a nossa libertação do que é.
 
Toda a nossa educação (…) está baseada no cultivo do temor. Vós desejais ser alguém; do contrário, não sois ninguém; por isso, lutais, competis e vos destruís. Só o homem que não tem medo é ninguém. Ser ninguém é que é a verdadeira educação. Há o espírito do anonimato nas grandes coisas da vida criadora. A verdade é anônima (…)

Pergunta: Um grande homem, depois de morrer, torna-se famoso e são-lhe prestadas honras.
 
Krishnamurti: Que é um grande homem? Descobri, vós mesmo (…) É aquele que busca a fama? É aquele que atribui a si mesmo uma tremenda importância? É aquele que se identifica com uma nação e se torna o seu líder? (…) Eis o que todos queremos; (…) aspiramos a ser grandes homens. A grandeza consiste em ter publicidade, ter o nome nos jornais, exercer autoridade sobre outros, impor-lhes obediência graças a uma vontade forte, (…) uma mente astuciosa? Ora, sem dúvida, a verdadeira grandeza é coisa muito diferente.
 
Grandeza é anonimato, e ser anônimo é a maior das coisas. As grandes catedrais, as grandes coisas da vida, as grandes esculturas, são obras anônimas. Não pertencem a ninguém, em particular, tal como a Verdade. A Verdade não pertence nem a vós, nem a mim; ela é de todo impessoal e anônima. Se afirmais possuir a Verdade, não sois então anônimo, e sois muito “mais importante” do que a Verdade. Mas uma pessoa anônima pode não ser, jamais, um grande homem.

Provavelmente nunca será um grande homem, porque não deseja ser grande, no sentido mundano ou mesmo no seu mundo interior, – porque ele é ninguém. Ele não tem seguidores. Não tem santuários e não anda cheio de vento. Infelizmente, porém, nós, em geral, queremos encher-nos de vento, ser grandes, conhecidos, ter muito sucesso. O sucesso conduz à fama, mas a fama é coisa vazia (…) É só cinzas. Todo político é muito conhecido; seu ofício é fazer-se conhecido, e, portanto, ele não é grande. A grandeza está em ser desconhecido, ser nada, tanto interior como exteriormente; e isso exige muita penetração, (…) compreensão e afeição. (…)

O que geralmente chamamos de criatividade é o que é feito pelo homem: pintura, música, literatura, (…) arquitetura (…) tecnologia. (…) Muitas coisas feitas pelo homem são muito belas; (…) e nós não sabemos nada das pessoas que as construíram. Mas agora, entre nós, o anonimato quase que desapareceu. Com o anonimato há uma espécie diferente de criatividade, não baseada no sucesso, no dinheiro (…)

http://www.krishnamurti.org.br
 

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