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sábado, 23 de março de 2019

SOBRE O ESTADO 
DE BELEZA CRIADORA



Senhor, que é a beleza e como nasce o estado de beleza criadora? Obviamente, é necessário a existência do amor. E o amor significa abandono completo, não é verdade? Não o estado de abandono criado pelo desejo, mas aquele abandono sem restrições, sem esperança de resultados, em que, por conseguinte, não há medo. Só pode haver esse abandono completo quando não existe o “eu”, o “ego”; e quando já não existe “eu”, não há, no estado de abandono, austeridade, simplicidade?
 
Para a maioria das pessoas, austeridade significa a destruição de tudo o que é belo ao redor delas. Exteriormente, essas pessoas rejeitam todas as coisas mundanas e só possuem umas poucas coisas, mas interiormente não são elas simples, absolutamente; pelo contrário, são extraordinariamente complexas, consumidas de desejos, ansiando por um certo resultado. Isto, por certo, não é austeridade. Ora, senhor, ser austero não significa negar o desejo. Tende a bondade de escutar. Só há estado de abandono quando não existe “eu”, mas o “eu” não pode ser destruído pelo simples expediente de reprimir o desejo. Afinal de contas, o desejo é energia, e se fosse destruído o desejo, nada mais seria possível. Necessitamos de uma energia extraordinária para que a mente tenha a possibilidade de estar quieta e de descobrir o que é Deus, o que é a verdade, e se aquela energia está sendo controlada, moldada, pelo medo, por influência de um condicionamento qualquer, ela não pode fluir “com abandono”, não pode ser livre; e, no entanto, essa energia, quando livre, criará sua peculiar austeridade.
 
É esse estado de abandono, com austeridade, que leva à beleza, e esse estado é amor. Se não temos amor, como podemos apreciar a beleza ou criar o que é belo? Mas, não pode haver amor enquanto não houver aquele abandono, que só se tornará existente quando não mais existir o “eu”, o “ego”. Está visto, pois, que esse estado criador só pode surgir ao existir amor, “abandono” e austeridade; mas a mera austeridade sem abandono, sem amor, nada significa.
 
O problema, por conseguinte, não é de como ser austero, de como abandonar ou expulsar o “eu”, mas, sim, de investigar o que é que se entende por amor. Como sabeis, dividimos o amor em coisa divina e coisa terrena, e criamos assim uma batalha entre as solicitações da carne e a ânsia do divino, entre o amor virtuoso e o amor físico. Mas é possível amar, não sentimental ou fisicamente, mas amar com aquela bondade e aquele perfume do amor no nosso coração, esvaziado de todas as coisas da mente? Ora, por certo, isto só é possível quando entregamos completamente o nosso coração a uma coisa; não há então conflito: há abandono, e esse estado de abandono cria sua peculiar austeridade, assim como um rio cria os barrancos que o contêm.
 
Mas a respeitabilidade que a sociedade confere nada tem que ver com esse austero estado de abandono. O que a sociedade exige é respeitabilidade, controle, mediocridade; a mente medíocre, porém, não pode “abandonar-se”; ela não é nem ardente nem fria; é cheia de temores, apreensões e, por conseguinte, não pode de modo nenhum conhecer o que é o amor. Os mais de nós nos deixamos meramente controlar pelas sanções da sociedade, pela moralidade social que diz “Isto é bom e aquilo é mau”; estamos apanhados no meio do conflito entre o que é e o que deveria ser, e tal é a razão por que já não sabemos amar. Somos simples máquinas imitativas e, assim sendo, não podemos conhecer aquele estado de abandono em que existe austeridade e que é o único estado criador. Não podeis achar Deus, a verdade, sem aquele total abandono, sem estardes livres de todas as crenças, todos os dogmas e temores — e isso significa abrir o coração de par em par e não o deixar encher-se com as coisas da mente. Só pode haver bondade, generosidade, quando a mente está quieta; a beleza, essa coisa que realmente é Deus, é amor, é a bondade, só pode tornar-se existente pelo completo abandono do “eu”. Mas o “eu” não pode ser abandonado mediante a observância de determinados preceitos, determinadas práticas, nem pela meditação. O “eu” deixará de existir pelo percebimento de sua própria limitação, da falsidade da sua própria existência. Por mais profundo que se torne, por mais que se amplifique, o “eu” é sempre limitado, e enquanto não for abandonado, a mente nunca será livre, O simples percebimento desse fato é o fim do “eu”, e só quando ele finda é possível vir à existência o real.

 
Krishnamurti – Visão da Realidade 
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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