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quarta-feira, 3 de junho de 2020

S O B R E   A   I N F E L I C I D A D E

Estudo aponta que brasileiros nunca foram tão infelizes em toda a ...

Infelicidade inconsciente

A classe mais infeliz de seres humanos é composta dos que ignoram a sua própria infelicidade. São os profanos absolutos, os analfabetos integrais da espiritualidade. Os que vivem, ou antes vegetam, ao sabor das impressões meramente sensitivas, como centenas de milênios atrás, quando o ancestral do homem, o infra homem, não sabia usar ainda a faculdade superior que o distingue do mundo irracional – embora essa faculdade já se achasse, em estado potencial, nas profundezas do seu ser.

A maior parte dos homens que vive ainda no plano puramente sensório serve- se da sua inteligência unicamente para alargar e intensificar as satisfações orgânicas; praticamente, não ultrapassa as estreitas barreiras da matéria; nada enxerga para além dessas fronteiras. Quando alguém lhes fala de um mundo ultrasensível, ficam a olhá-lo estupidamente, sem nada compreender. Alguns deles consideram o homem espiritual como um pobre iludido, caçador de miragens e sonhador de quimeras. Outros têm-no em conta de hipócrita que quer dar-se uns ares de importância perante a turbamulta dos materialistas e agnósticos. Outros ainda admiram o homem espiritual como um “idealista”, mas cujas ideias e ideais não devam ser tomados a sério, uma vez que, no entender deles, são inaplicáveis à vida real; perdoam ao idealista a “fraqueza” de se refugiar num mundo de sonhos e ilusões, já que o mundo da crua realidade o tratou com tanta dureza e lhe pôs a alma em chaga viva.
 

Esses profanos são profundamente infelizes, precisamente porque nem ao menos suspeitam a sua infelicidade. O mais deplorável dos doentes é aquele que ignora a sua doença, ou até a considera como estado normal de perfeita saúde. O mais deplorável dos cegos é aquele que tem a sua cegueira em conta de visão. O mais deplorável dos profanos é aquele que considera a sua ignorância como a quintessência da sabedoria da vida. A sua “felicidade” não é senão o fruto da sua horrorosa obtusidade espiritual. É preferível a mais dolorosa infelicidade do homem pensante a essa horripilante felicidade do homem que nunca pensou...

 

Infelicidade consciente

Entretanto, cedo ou tarde, o profano tem de sair do estreito casulo da sua feliz ignorância e entrar na zona vastíssima do pensamento e da experiência real. Poucos homens conseguem manter através da vida inteira esse paraíso tranquilo embalado numa ignorância absoluta e integral. A maior parte dos homens normais começa a refletir sobre o “de onde”, o “para onde” e o “porquê” do mundo e da vida humana – e toda a reflexão destrói, total ou parcialmente, o edifício do agnosticismo, e, com o desmoronar dos muros do castelo, lá se foi a paz da alma e a tranquilidade do espírito!...
 

Quanto mais o homem pensa tanto menos sorri, porque todo o pensar gera pesar, e toda a introspecção cria insatisfação... Na zona dos pensamentos puramente intelectuais há poucos que riem – como os há para aquém e para além dessa zona. É que a região do pensamento intelectual é a região dos problemas, e onde há problemas há muitas lágrimas e pouco sorriso. -De maneira que o profano que pensa é, geralmente, um homem conscientemente infeliz – assim como o profano que não pensa é inconscientemente infeliz.
 

Entretanto, o sentimento da infelicidade é um veneno roaz, que ninguém suporta, indene, por muito tempo. Por isso, o infeliz procura felicidade em mil e mil derivativos, narcóticos, intoxicantes e expedientes de todo gênero. E há tantas coisas e coisinhas interessantes e divertidas, no vasto âmbito do mundo circunjacente... Para o menos exigente, há os prazeres fáceis dos sentidos – e quão grande é a sua variedade e prepotência! Que delícias no plano do comer, do beber e do sexo! Para outros, que excitantes aventuras nas especulações financeiras, nos trabalhos comerciais, industriais, científicos, sociais! Que inebriante sedução às mesas de jogo e nos bastidores da política! Que suaves carícias nos causam as auras tépidas da fama, dos elogios, da celebridade! E quão fascinantes são, para muitos, as viagens a terras longínquas e a povos desconhecidos!
 

De maneira que não faltam ao homem que não tolere o vácuo do próprio Ego ensejos de encontrar plenitudes fora de si mesmo e camuflar com as riquezas externas a pobreza do seu interior. Nessa permanente fuga diante de si mesmo encontram muitos profanos conscientemente infelizes um ersatz, um sub-rogado, pela felicidade que lhes falta. Embora essas coisas externas não os façam, propriamente, felizes, pelo menos lhes diminuem e suavizam, temporariamente, a consciência da infelicidade – e a pobre criança de sua alma, soluçando por algo que ignora, acalma, por momentos, a sua dolorosa nostalgia e inquietude metafísica...
 

Alguns desses profanos pensantes lançam mão de outro expediente para fugir das secretas torturas da sua profunda infelicidade: arremetem furiosamente contra o próprio objeto desse mal-estar, investem contra a causa do mesmo, procuram quebrar de vez o ominoso espelho em que esse horripilante monstro da inquietude metafísica mostra a sua feia carranca. A exemplo de Voltaire, propõem-se a provar, se não com argumentos acadêmicos, ao menos com gargalhadas de cinismo, que Deus não existe e que a vida eterna é um mito. Como a avestruz no deserto – que, segundo dizem, quando perseguida pelo caçador esconde a cabeça debaixo de areia, julgando não ser vista por quem ela não vê –, tentam esses profanos insinceros provar a não existência daquilo que os torna tão infelizes; pois, uma vez provado o caráter fictício e irreal da causa do mal, segue-se que também os efeitos não passam de simples ficção e alucinação.
 

É deveras notável até que ponto possa um homem acreditar na “verdade” das suas próprias mentiras, quando corajosas e indefinidamente repetidas! Uma afirmação que, da primeira vez, lhe era 100% falsa, depois da centésima repetição acaba por lhe parecer 50% verdadeira, e depois da milésima ou milionésima repetição adquire foros de 100% verdadeira – tamanha é a força da auto-sugestão, sobretudo quando a serviço de uma imperiosa necessidade moral!
 

A mais difícil das coisas difíceis é a sinceridade para conosco mesmos – e a falta dessa auto-sinceridade é a razão por que há tão poucos homens realmente espirituais. Procuramos mil e uma evasivas e subterfúgios, desde os mais sérios até os mais ridículos, para não aceitar a verdade sobre nós mesmos – por quê? Porque a aceitação real e prática dessa verdade implica algo parecido com uma dolorosa intervenção cirúrgica nos tecidos vivos do nosso próprio Eu – e ninguém gosta de ser operado...
 

Digamo-lo desde já: o início de uma vida de comunhão com Deus é indizivelmente doloroso e tremendamente difícil; é uma “porta estreita” e um “caminho apertado”; é uma “morte” – “se o grão de trigo não morrer”... (Jesus); e até uma “morte cotidiana” – “pelo regozijo que tenho em Cristo Jesus, protesto que morro todos os dias” (Paulo de Tarso). Disto sabem todos os grandes iniciados, esses homens integralmente sinceros consigo mesmos.
 

O profano, porém, não é assaz corajoso para arrostar a verdade sobre si mesmo – a verdade redentora que o levaria das trevas à luz, através dos sofrimentos do Gólgota às glórias da ressurreição.

Nunca existiu um só homem profano que, de consciência tranquila, pudesse afirmar “sou feliz”, porque, afinal de contas, é verdade o que um deles, depois da sua conversão, escreveu, como locutor de milhões de outros: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que encontre quietação em ti”...


Huberto Rohden, Trecho do livro "Em Comunhão com Deus - Colóquios com os homens - Solilóquios com Deus
Universalismo 

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