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sábado, 7 de setembro de 2019

O HOMEM DE CONHECIMENTO


Quando eu estava me preparando para partir tornei a perguntar-lhe acerca dos inimigos do homem de conhecimento. Argumentei que ia passar algum tempo sem voltar e que seria uma boa ideia escrever as coisas que ele tivesse a dizer e pensar a respeito enquanto estivesse fora. Hesitou um pouco, mas depois começou a falar:

Quando um homem começa a aprender ele nunca sabe muito claramente quais seus objetivos. Seu propósito é fumo; sua intenção, vaga. Espera recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das dificuldades da aprendizagem.

“Devagar, ele começa a aprender… a princípio, pouco a pouco e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente, sem ceder. Seu propósito torna-se um campo de batalha.

“E assim ele se depara com o primeiro de seus inimigos naturais: o Medo! Um inimigo terrível, traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho, rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu inimigo terá posto um fim à sua busca.

– O que acontece com o homem se ele fugir com medo?

– Nada lhe acontece, a não ser que nunca aprenderá. Nunca se tornará um homem de conhecimento. Talvez se torne um tirano, ou um pobre homem apavorado e inofensivo; de qualquer forma será um homem vencido. Seu primeiro inimigo terá posto um fim a seus desejos.

– E o que pode ele fazer para vencer o medo?

– A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o seguinte. Deve ter medo, mente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se sentir seguro de si. Seu propósito torna-se mais forte. Aprender não é mais uma tarefa aterradora. Quando cessa esses momentos infelizes, o homem pode dizer, sem hesitar, que derrotou seu primeiro inimigo natural.

– Isso acontece de uma vez, Dom Juan, ou aos poucos?
 
– Acontece aos poucos e no entanto o medo é vencido da repente e depressa.

– Mas o homem não terá medo outra vez, se lhe acontecer alguma coisa nova?

– Não. Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida, porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza de espírito que apaga o medo. Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O homem sente que nada se lhe oculta.

“E assim ele encontra seu segundo inimigo: a Clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas também cega.

“Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque tudo  é muito claro e não para diante de nada porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-conta, sucumbiu a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até tornar-se incapaz de aprender qualquer coisa mais.

– O que acontece com um homem que é derrotado assim, Dom Juan? Ele morre por isso?

– Não, não morre. Seu inimigo acaba de impedi-lo de se tornar um homem de conhecimento; em vez disso, o homem pode tornar-se um guerreiro valente, ou um palhaço. No entanto, a clareza, pela qual ele pagou tão caro, nunca mais se transformará de novo em trevas ou medo. Será claro enquanto viver, mas não aprenderá nem desejará nada.

– Mas o que tem de fazer para não ser vencido?

– Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder.

“Ele saberá a essa altura que o poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim. Pode fazer o que quiser com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é a ordem. Vê tudo o que está em volta. Mas também encontrou seu terceiro inimigo: o Poder!

“O poder é o mais forte de todos os inimigos. E naturalmente a coisa mais fácil é ceder; afinal de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor.

“Um homem nesse estágio quase nem nota seu terceiro inimigo se aproximando. E de repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá transformado numa pessoa cruel e caprichosa.

– E ele perderá o poder?
 
– Não, ele nunca perderá sua clareza nem seu poder.
 
– Então o que o distinguirá de um homem de conhecimento?
 
– Um homem que é derrotado pelo poder morre sem saber manejá-lo. O poder é apenas uma carga em seu destino. Um homem desses não tem domínio sobre si, e não sabe quando ou como usar seu poder.

– A derrota por algum desses inimigos é uma derrota final?

– Claro que é final. Uma vez que esses inimigos dominem o homem não há nada que ele possa fazer.

– Será possível, por exemplo, que o homem derrotado pelo poder veja seu erro e se emende?

– Não. Uma vez que o homem cede, está liquidado.
 
– Mas, e se ele estiver temporariamente cego pelo podar, e depois recusar?

– Isso significa que a batalha continua. Isso significa que ele ainda está tentando ser um homem de conhecimento. O indivíduo é derrotado quando não tenta mais e se abandona.

– Mas então, Dom Juan, será possível que um homem se entregue ao medo durante anos, mas que no fim ele o vença.

– Não, isso não é verdade. Se ele ceder ao medo, nunca o vencerá porque se desviará do conhecimento e nunca mais o terá. Mas se procurar aprender durante anos no meio de seu medo, acabará dominando-o, porque nunca se entregou realmente a ele.

– E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?

– Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender que o poder que parece ter adquirido, na verdade, nunca é seu. Deve controlar-se em todas as ocasiões que ele surgir, deve ter cuidado e ser  leal com tudo o que aprendeu. Se conseguir ver que a clareza e o poder sem seu controle sobre si mesmo são piores do que os erros, saberá quando e como usar seu poder, e, assim, terá derrotado seu terceiro inimigo.

“O homem estará, então, no fim de sua jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá derrotar completamente, mas apenas afastar.

“É o momento em que o homem não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito… um momento em que todo seu poder está controlado, mas também o momento em que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido o último round, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de se retirar dominará toda sua clareza, seu poder e sabedoria.

“Mas se o homem sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é o suficiente.


Carlos Castaneda - Trecho do livro A Erva do Diabo 
http://destruidordedogmas.com.br

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