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quinta-feira, 4 de abril de 2019

AUTO MELHORAMENTO É PROGRESSO 
NO SOFRIMENTO E NÃO ELIMINAÇÃO 
DO SOFRIMENTO
 
 
Uma das coisas mais difíceis de compreender parece-me ser o problema da transformação. Como vemos existe progresso de diferentes maneiras na chamada “evolução”; mas há transformação fundamental no progresso? Não sei se esse problema já se vos terá apresentado ou se já alguma vez pensaste nele, mas talvez convenha o apreciarmos agora.
 
Vemos que há progresso, no sentido “visível” da palavra: novas invenções, automóveis e aviões melhores, geladeiras melhores, a paz superficial de uma sociedade... etc. Mas esse progresso está produzindo alguma transformação radical no homem, em vós, em mim? Ele altera superficialmente a conduta de nossa vida, mas pode transformar fundamentalmente o nosso pensar? E como operar essa transformação fundamental? Acho ser este um problema que vale a pena considerar. Há progresso no automelhormento; amanhã posso ser melhor, mais amável, mais generoso, menos invejoso, menos ambicioso. Mas o automelhoramento produz a modificação completa do nosso pensar? Ou não há transformação nenhuma, mas só progresso? O progresso implica tempo, não? Sou assim hoje e serei um pouco melhor amanhã. Isto é, no melhoramento, na renúncia, na negação de mim mesmo, há uma progressão, um movimento gradual para uma vida melhor, o que significa que o indivíduo se está ajustando superficialmente ao ambiente, a um padrão melhorado, está sendo condicionado de maneira mais nobre, etc. Vemos constantemente esse processo em vigor. E já vos deveis ter perguntado, como eu o tenho feito, se o progresso produz revolução fundamental.

Para mim, a coisa mais importante não é o progresso, mas a revolução. Não fiqueis horrorizado com a palavra “revolução” — como fica a maioria das pessoas que fazem parte de uma sociedade adiantada como esta. Mas quer-me parecer que, se não compreendermos a enorme necessidade de se produzir, não apenas uma melhora social, mas uma radical mudança de nossa perspectiva, o mero progresso será progresso no sofrer; poder-se-á apaziguar, acalmar o sofrimento que estará sempre latente. Afinal de contas progresso no sentido de nos tornarmos melhores num certo período de tempo constituí, realmente, o “processo” do “eu”, do “ego”. Há evidentemente progresso no automelhoramento, que é o esforço decidido para se ser bom, para se ser mais isto ou menos aquilo, etc. Assim como há sempre melhoramentos nas geladeiras e nos aviões, assim também há a possibilidade de melhoramento do “eu”; mas este melhoramento, este “progresso”, não liberta a mente do sofrimento.

Nessas condições, se desejamos compreender o problema do sofrimento e, se possível, faze-lo cessar, não devemos de modo nenhum pensar em termos de progresso; porque o homem que pensa em termos de progresso, de tempo, e diz que será feliz amanhã, está vivendo no sofrimento. E para compreendermos este problema, temos de entrar fundo na questão da consciência, não achais? Este assunto é difícil demais? Vou continuar e veremos.

Se desejo realmente compreender o sofrimento e ver o fim do sofrimento, tenho de verificar, não só quais são as coisas implicadas no progresso, mas também, que entidade é essa que deseja melhorar a ai mesma; e devo conhecer, também, o “motivo” que a impele a buscar melhoramento. Tudo isso é consciência. Existe a consciência superficial das atividades diárias: a ocupação, a família, o constante ajustamento ao ambiente social, de maneira feliz e fácil, ou de maneira contraditória, neurótica. E há também o nível mais profundo da consciência, que é a vasta herança social do homem, formada através de séculos: a vontade de existir, a vontade de alterar, a vontade de “vir a ser”. Se desejo realizar uma revolução fundamental em mim mesmo, sem dúvida preciso compreender esse processo total da consciência.

Pode-se ver claramente que o progresso não traz consigo nenhuma revolução. Não falo de revolução social ou econômica — que é muito superficial, como, penso eu, todos vós concordareis. A derrubada de um sistema social ou econômico e o estabelecimento de um novo, não altera certos valores, como é o caso da revolução russa, e de outras revoluções históricas. Refiro-me à revolução psicológica, a única revolução verdadeira; e o homem religioso deve achar-se nesse estado de revolução, de que falarei mais adiante.

Ao atacar-se este problema do progresso e da revolução, faz-se necessário um percebimento, uma compreensão do processo total da consciência. Entendeis? Enquanto eu não compreender realmente o que É a consciência, o mero ajustamento de superfície, conquanto possa ter significação sociológica e mesmo estabelecer uma melhor maneira de viver, com mais comida e menos miséria na Ásia, menos guerras, — nunca resolverá o fundamental problema do sofrimento. Sem se compreender, e dissolver, e transcender o impulso causador do sofrimento, o simples ajustamento social é a conservação, em estado latente, da semente do sofrimento. Assim sendo, tenho de compreender o que é a consciência, mas não de acordo com alguma filosofia, psicologia ou descrição, e, sim, “experimentando” diretamente o estado real de minha consciência, com todo o seu conteúdo.

Ora, possamos neste momento, “experimentar” algo a esse respeito. Vou descrever o que é a consciência; mas, enquanto eu a estiver descrevendo, não vos limiteis a acompanhar a descrição, porém, antes, observai o “processo” do vosso próprio pensar, para conhecerdes, então, por vós mesmos, o que é a consciência, sem precisardes ler os relatos contraditórios das descobertas dos diferentes especialistas. Compreendeis? Eu estou descrevendo uma coisa. Se apenas escutais a descrição, ela terá muito pouca significação; mas, se, por meio da descrição, estais “experimentado” a vossa própria consciência , o vosso próprio “processo de pensar”, então ela terá uma importância extraordinária, agora mesmo, e não amanhã ou noutro dia qualquer, quando tiverdes tempo de refletir a tal respeito, o que vem a ser uma coisa completamente absurda, já que constitui um mero adiantamento.

Se, por meio da descrição, puderdes conhecer o verdadeiro estado de vossa própria consciência, enquanto aqui estais, sentados nos vossos lugares, vereis que a mente é capaz de libertar-se de sua vasta herança de condicionamento, de todas as acumulações e decretos da sociedade, e tem a possibilidade de ultrapassar a consciência do “eu”. Se experimentardes assim, terá utilidade a descrição.

Estamos procurando descobrir por nós mesmos o que é a consciência e se a mente tem a possibilidade de libertar-se do sofrimento — não de modificar o padrão de sofrimento, de decorar a prisão do sofrimento, mas de ficar livre, de todo, da semente, da raiz do sofrimento. Ao investigarmos isso, veremos a diferença que há entre o progresso e a revolução psicológica, que é essencial se desejamos a nossa libertação do sofrimento. Não estamos tentando alterar o conteúdo de nossa consciência, não estamos procurando fazer coisa alguma com relação a esse conteúdo; estamos, apenas, a observá-lo. Com efeito, por pouco que observemos, por mais ligeira que seja a nossa percepção, podemos conhecer as atividades da consciência superficial. Podemos ver que, na superfície, a nossa mente está ativa, ocupada em ajustar-se, ocupada num emprego, a ganhar o sustento, a expressar certas tendências, dotes, talentos, ou adquirindo certos conhecimentos técnicos; e quase todos nós nos satisfazemos com viver na superfície.

Por favor, não acompanheis meramente o que estou dizendo, mas observai a vós mesmos, vossa própria maneira de pensar. Eu estou descrevendo o que está passando superficialmente, na vossa vida diária — distrações, fugas, eventuais fases de medo, ajustamento à esposa, ao marido, à sociedade, etc.— e esta superficialidade basta à maioria de nós.

Ora, podemos mergulhar nas camadas mais profundas e perceber o “motivo” desse ajustamento superficial? Assim, com um pouquinho de conhecimento desse processo, vereis que esse ajustamento à opinião, aos valores, essa aceitação da autoridade, etc., é ocasionado pelo impulso de autoperpetuação, autoproteção. Mas, se descerdes mais fundo, achareis lá uma vasta subcorrente de instintos raciais, nacionais e tribais, todas as acumulações das lutas, do saber, dos empreendimentos humanos, dos dogmas e tradições do hinduísta, do budista, ou do cristão; todos os resíduos da chamada educação, através dos séculos — todas as coisas que nos condicionaram a mente de acordo com um certo padrão hereditário. E, descendo-se ainda mais fundo, lá estará o desejo primário de existir, de ter bom êxito na vida, de “vir a ser”, o qual se expressa, na superfície, em várias formas de atividade social, criando ansiedades e temores de fundas raízes. Dito mui suscintamente, a totalidade dessas coisas é a nossa consciência. Por outras palavras, o nosso pensar se baseia no impulso fundamental para existir, para vir a ser, e, acima deste, se encontram as muitas camadas de tradição, de cultura, educação, e o condicionamento superficial de uma dada sociedade, forçando-nos, tudo isso, a adaptar-nos a um padrão que nos possibilita sobreviver. Há muitos outros pormenores e sutilezas, mas, em essência, isto é a nossa consciência.

Pois bem. Todo progresso realizado dentro dessa consciência constitui automelhoramento, e automelhoramento é progresso no sofrimento, e não eliminação do sofrimento. Isto é muito claro, se observardes. E se a mente tem muito interesse em ficar livre de todo sofrimento, que deve fazer? Não sei se já pensastes neste problema, mas tende a bondade de pensar agora.

Nós sofremos, não é exato? Sofremos não só por doença ou incômodos físicos, mas também por causa da solidão, da pobreza do nosso ser. Sofremos porque não somos amados. Quando amamos alguém e não temos retribuição desse amor, sofremos. Em todos os sentidos, pensar é estar cheio de angústias; por conseguinte, parece-nos que será melhor não pensar e aceitamos, assim, uma crença, e ficamos estagnados nessa crença, a que chamamos religião.

Ora, se a mente perceber que o sofrimento não tem fim por via do automelhoramento, do progresso, o que é muito evidente, que deve ela fazer? Pode a mente transcender essa consciência, transcender os vários impulsos e desejos contraditórios? E esse transcender depende do tempo? Segui isso, não só verbalmente, mas realmente. Se é coisa dependente do tempo, voltais então à mesma cosia, isto é, ao progresso. Percebeis isso? Dentro da estrutura da consciência, todo movimento, em qualquer direção, é automelhoramento, e por conseguinte faz continuar o sofrimento. O sofrimento pode ser controlado, disciplinado, subjugado, racionalizado, requintado, mas a sua qualidade potencial continuará a existir; e para nos vermos livres do sofrimento precisamos libertar-nos dessa potencialidade, dessa semente do “eu”, do “ego”, de todo o processo de “vir a ser”. Para passarmos além, é necessária a cessação desse processo. Mas, se disserdes: “Como poderei passar além?”, nesse caso, o “como” se torna o método, prática, quer dizer, progresso, que não é uma maneira de passar além, mas só de tornar mais apurada a consciência do nosso sofrer. Espero que estejais compreendendo.

A mente pensa em termos de progresso, de melhoramento, de tempo; e é possível que, reconhecendo que o chamado progresso é “progresso no sofrer”, essa mente cesse de todo, não no tempo, não amanhã, mas imediatamente? De outra maneira, ver-nos-emos de novo na mesma rotina, na velha roda de suplícios. Se o problema está enunciado de maneira clara e for claramente compreendido, vós encontrareis a solução absoluta. Emprego a palavra “absoluta” no seu sentido correto. Não há outra solução.

Isto é, nossa consciência está constantemente lutando para ajustar, modificar, mudar, absorver, rejeitar, avaliar, condenar, justificar; mas todo movimento semelhante, da consciência, está sempre dentro do padrão do sofrimento. Todo movimento que ocorre dentro dessa consciência, como sejam, os sonhos, os esforços da vontade, é movimento do “eu”; e todo movimento do “eu”, seja em direção das coisas mais sublimes, seja em direção das coisas mais mundanas, gera sofrimento. Quando a mente percebe isso, que lhe acontece? Compreendeis a pergunta? Quando a mente percebe a verdade a esse respeito, não apenas verbalmente, mas totalmente, existe então algum problema? Existe problema quando observo uma cascavel e sei que ela é venenosa? Analogamente, se sou capaz de prestar toda atenção a esse “processo” do sofrimento, não está então a mente além do sofrimento?

Tende a bondade de prestar atenção. Nossa mente está agora ocupada com o sofrimento e o modo de evitar o sofrimento, esforçando-se para dominá-lo, diminuí-lo, modifica-lo, fugir dele de várias maneiras. Mas, se percebo, não superficialmente apenas, mas através de todas as camadas, que essa própria ocupação da mente com o sofrimento é movimento do “eu”, criador de sofrimentos; se percebo realmente a verdade a esse respeito, não ultrapassou então a mente essa coisa que chamamos consciência do “eu”?

Expressando-o diferente: Nossa sociedade está baseada na inveja, no desejo de aquisição, não só aqui na América, mas também na Europa e na Ásia, e nós somos o produto dessa sociedade, existente há séculos e milênios. Ora bem, prestai atenção. Reconheço que sou invejoso. Posso apurar esse sentimento, controla-lo, discipliná-lo, encontrar-lhe um substituto através de atividades caritativas, reformas sociais, etc.; mas a inveja lá estará sempre, latente, pronta a saltar para fora. Como pode, então, a mente libertar-se totalmente da inveja? Pois a inveja traz inevitavelmente conflito, a inveja é um estado em que não há ação criadora; e todo homem que deseja descobrir o que é “ação criadora” deve, é óbvio, estar livre da inveja, da comparação, dos impulsos para “vir a ser”.

A inveja é um sentimento que identificamos com uma palavra. Identificamos o sentimento dando-lhe um nome, aplicando-lhe o termo “inveja”. Prosseguirei lentamente e tende a bondade de seguir-me, pois estou fazendo a descrição de nossa consciência. Há um certo estado de sentimento, e a esse estado dou um nome, chamando-o “inveja”. Esta mesma palavra “inveja” é condenatória, tem significados sociais, morais e espirituais, que fazem parte da tradição em que fui educado; assim, pelo próprio emprego da palavra, condenei o sentimento, e esse processo de condenação é automelhoramento. Quando condeno a inveja, estou progredindo na direção oposta, que é a da “não-inveja”, mas esse movimento parte, ainda, do centro que é invejoso.

Pode, pois, a mente por fim ao “dar nome”? Quando há sentimento de ciúme, de concupiscência, de ambição de ser alguma coisa, pode a mente, que foi educada no uso da palavra, na condenação, no dar nome, deter completamente o “processo” de dar nome? Experimentai isso, e vereis como é difícil não dar nome a um sentimento. O sentimento e o dar nome são quase simultâneos. Mas, quando não ocorre a ação de dar nome, há então sentimento? Persiste o sentimento, quando não se lhe dá nome algum? Estais compreendendo, ou isto é abstrato demais? Não concordeis nem discordeis de mim, pois não se trata de minha vida, mas de vossa vida.

Esse problema de dar nome a um sentimento, aplicar-lhe um termo, faz parte do problema da consciência. Tomai, por exemplo, a palavra “amor”. Que deleite a mente experimenta, no mesmo instante, com essa palavra! Ela encerra tanta significação, tanta beleza, tanto conforto, e tantas outras coisas! E a palavra “ódio” tem imediatamente uma significação toda outra, de coisa que se deve evitar, da qual devemos livrar-nos, fugir, etc. Tem, pois, as palavras, um extraordinário efeito psicológico para a mente, quer estejamos cônscios disso, quer não.

Ora, pode a mente ficar livre de toda essa “verbalização”? Se pode — e ela deve poder, porque do contrário não irá muito longe — surge então o problema: Existe um “experimentador” separado da “experiência”? Se existe experimentador separado da experiência, então a mente está condicionada, porque o experimentador está sempre a acumular ou rejeitar experiências, a traduzir cada experiência em termos de seus próprios gostos e aversões, em termos ditados pelo próprio fundo, seu condicionamento; se ele tem uma visão, pensa que ela é Jesus, um Mestre, ou sabe Deus o que mais. Assim, enquanto há experimentador, há “progresso no sofrer”, que é o processo próprio da consciência do “eu”.
 
Mas, para se passar além, para se transcender tudo isso, requer-se uma atenção extraordinária. Esta atenção total, na qual não há escolha alguma, nem ideia de “vir a ser”, mudar, alterar, liberta a mente do “processo” da consciência do “eu”; e então não existe mais “experimentador” que acumula, e só então é que se pode dizer com veracidade que a mente está livre do sofrer. A acumulação é que é a causa do sofrimento. Nós não morremos para todas as coisas, de dia em dia, não morremos para as inumeráveis tradições, para a família, para as nossas próprias experiências, nosso próprio desejo de fazer mal a outrem. Precisamos morrer para TUDO isso, de momento a momento, morrer para esta vasta memória constituída de acumulações, porque só então a mente está livre do “eu”, a entidade nascida da acumulação.

Talvez, se examinarmos juntos esta questão, possamos esclarecer tudo o que foi dito.

 
Krishnamurti
http://pensarcompulsivo.blogspot.com 
 

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