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segunda-feira, 15 de abril de 2019

A CHAMA DA DOR
 
 
Passeávamos em Nova Delhi pelos jardins públicos, próximo a um imenso hotel. O céu do oeste tinha um tom azul dourado e os ônibus e automóveis passavam ruidosamente. Havia nesse jardim jovens plantas cheias de promessas; eram regadas todos os dias. Ainda estavam construindo, criando os jardins, e um pássaro vibrava no céu agitando rapidamente as asas antes que se precipitasse para a terra; e neste se somava a lua cheia. A beleza não estava em nenhuma destas coisas senão no imenso vazio que parecia conter a terra. A beleza era o pobre homem que com a cabeça abaixada levava uma pequena botija de azeite.
 
Krishnamurti: Que significado tem a dor neste pais? Como o povo deste país encara a dor? Fogem da dor mediante a explicação do Karma? Como a mente indiana opera quando se enfrenta com a dor? Os budistas a encaram de um modo, os cristãos de outro. Como a encara a mente hindu? Resiste a dor ou dela escapa? Ou a mente hindu a racionaliza?

Interlocutor: Existem realmente muitos modos de encarar a dor? Dor é sofrimento — o sofrimento de alguém que morre, o sofrimento da separação. É possível enfrentá-lo de diversos modos?

Krishnamurti: Existem diversas vias de fuga, mas só há um modo de enfrentar-se a dor. As fugas com as quais todos estamos familiarizados são na realidade maneiras de iludir a grandeza da dor. Como vê, encaramos a dor com explicações, mas estas explicações não são uma resposta ao problema. O único modo de entender-se com a dor é fazê-lo sem resistência, sem um só movimento, externo ou interno, para fugir; há que permanecer totalmente com a dor, sem desejar achar-se fora dela.

Interlocutor: Qual é a natureza da dor?

Krishnamurti: Há a dor pessoal, a dor que vem com a perda de alguém a que se ama, a solidão, a separação, a ansiedade pelo outro. Com a morte está também o sentimento de que o outro cessou de existir e que havia tanto que ele gostaria de fazer. Tudo isso é dor pessoa; Logo há esse homem mal vestido, sujo, que abaixa a cabeça; ele é ignorante, ignorante não só em conhecimentos livrescos, senão real e profundamente ignorante. O sentimento que se tem pelo homem não é de piedade, nem há uma identificação com esse homem; não se trata de que por encontrar-se em uma posição melhor experimente piedade por ele, senão que dentro de si há o sentimento da carga atemporal da dor no homem. Nada há de pessoal na relação com esta dor. Ela existe.

Interlocutor: Enquanto você falava, o movimento da dor tem estado operando dentro de mim. Não há uma causa imediata para esta dor, mas ela parece ser como uma sombra que sempre acompanha ao homem. O homem vive, ama, estabelece vínculos e tudo isso termina. Qualquer que seja a verdade do que você diz, há tanta infinitude de dor nisto! Como isso pode terminar? Parece não haver resposta. Outro dia você disse que na dor está contida todo o movimento da paixão. O que isso significa?

Krishnamurti: Existe uma relação entre a paixão e a dor? Pergunto-me o que é a dor. Há uma tal coisa como a dor sem causa? Nós conhecemos a dor que tem causa e efeito. Morre meu filho; nisso está envolvida minha identificação com o filho, meu desejo de que ele seja algo que eu não fui, minha busca de continuidade através dele. E quando ele morre, tudo isso é negado, e eu me encontro completamente vazio de toda esperança. Nisto há autopiedade, medo. Nisto há uma pena que é a causa da minha dor. Esta é a parte que a todos nos toca. Isto é o que entendemos por dor.

Logo, há a dor do tempo, a dor da ignorância, não a ignorância com relação aos conhecimentos, senão a ignorância com relação ao próprio condicionamento destrutivo; a dor de não conhecer-se a si mesmo, de não conhecer a beleza que está nas profundidades do próprio ser, e mais além.

Vemos que ao escapar da dor mediante diversos tipos de explicações, na realidade desperdiçamos pouco a pouco um fato extraordinário?

Interlocutor: Então, o que é que se há de fazer?

Krishnamurti: Você não respondeu a minha pergunta: “Existe uma dor sem causa e efeito?” Nós conhecemos a dor e o movimento para fugir da dor.

Interlocutor: Você fala da dor livre de causa e efeito. Existe um estado semelhante?

Krishnamurti: O homem tem vivido com a dor desde tempos imemoráveis. Nunca soube como entender-se com a dor. Por isso, lhe tem rendido culto ou tem escapado dela. Ambas as coisas são o mesmo movimento. Minha mente não faz nem um nem outro, e tampouco utiliza a dor como um recurso para despertar. O que ocorre então?

Interlocutor: Todas as outras coisas são o produto de nossos sentidos. A dor é mais que isto. É um movimento do coração.

Krishnamurti: Eu lhe pergunto qual é a relação que há entre a dor e o amor.

Interlocutor: Ambos são movimentos do coração.

Krishnamurti: O que é o amor e o que é a dor?

Interlocutor: Os dois são movimentos do coração; um se identifica como felicidade e outro como sofrimento.

Krishnamurti: O prazer é amor? Você diria que a felicidade e o prazer são a mesma coisa? Sem compreender a natureza do prazer, a felicidade carece de profundidade. Você não pode convidar à felicidade, ela ocorre. O sucesso pode transforma-se em prazer. Quando esse prazer é negado, começa a dor.

Interlocutor: Em um nível é assim, mas não em outro nível.

Krishnamurti: Como dissemos, a felicidade não é algo que possa ser convidado. Acontece. Eu não posso convidar ao prazer, posso perseguir o prazer. Se o prazer é amor, então o amor pode cultivar-se.

Interlocutor: Sabemos que o prazer não é amor. O prazer pode ser uma manifestação do amor, mas não é o amor. Ambos, tanto a dor como o amor, emergem da mesma fonte.

Krishnamurti: Eu perguntei que relação há entre a dor e o amor. Pode haver amor se há dor? (sendo a dor, todas as coisas que temos falado).

Interlocutor: Eu diria “Sim”.

Krishnamurti: Na dor há um fator de separação, de fragmentação. Não existe uma grande dose de autopiedade na dor? Qual é a relação de tudo isso com o amor? Há dependência no amor? O amor tem a qualidade do “eu” e do “tu”?

Interlocutor: Mas você fala de paixão...

Krishnamurti: Há amor quando não existe o movimento para escapar da dor. A paixão é a chama da dor, e essa chama só pode despertar-se quando não há fuga nem resistência. Isso significa que a dor não tem em si a qualidade da divisão.

Interlocutor: Em tal sentido, há alguma diferença entre esse estado de dor e o estado de amor? A dor é sofrimento. Você disse que quando nesse sofrimento não há resistência, nem há um movimento para escapar, emerge a chama da paixão. Estranhamente, nos textos antigos se diz que Kama (amor), agni (fogo) e yama (morte), são o mesmo; são colocados no mesmo nível, são completamente idênticos; criam, purificam e destroem para voltar a criar. Tem que haver um fim.

Krishnamurti: Como vê, é assim. Qual a relação de uma mente que tenha compreendido a dor, e, portanto, tenha cessado com a dor? Qual é a qualidade da mente que já não teme o fim, o qual é morte? Quando a energia não se dissipa mediante a fuga, essa energia se converte na chama da paixão. Compaixão significa paixão por tudo. A compaixão é a paixão por tudo.


Krishnamurti - Tradição e Revolução
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