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segunda-feira, 12 de agosto de 2019

DESPERTANDO A CHAMA PURA 
DA PAIXÃO SEM CAUSA


[...] o medo, o sofrimento e aquilo que chamamos amor andam sempre juntos. Se não compreendemos o medo, não podemos compreender o sofrimento, nem tampouco conhecer aquele estado de amor isento de contradição e atrito. Extinguir o sofrimento é dificílimo, porque o sofrimento está sempre conosco, numa ou noutra forma. Desejo, pois, aprofundar este problema; mas pouco significarão minhas palavras se cada um de nós não examinar o problema dentro de si próprio, sem concordar nem discordar, porém simplesmente observando o fato. Se pudermos fazer realmente e não apenas teoricamente, então talvez nos seja possível compreender o imenso significado do sofrimento e, dessa maneira, pôr-lhe fim.

Através dos séculos o amor e o sofrimento sempre andaram de mãos dadas, predominando ora um, ora outro. Aquele estado a que chamamos “amor” depressa passa e de novo nos vemos enredados em nossos ciúmes, nossas vaidades, nossos temores, nossas angústias. Sempre houve essa batalha entre o amor e o sofrimento; e, antes de examinar a questão de pôr fim ao sofrimento, impende compreender o que é paixão.

[...] Aqui estamos para descobrir, por nós mesmos, se é realmente possível deixarmos de sofrer, de modo que a mente fique desanuviada, clara, penetrante, capaz de pensar sem ilusão. E isso não é possível, se vivemos meramente no nível das palavras — como provavelmente acontece. Conceitos, padrões, ideais, palavras, símbolos — tudo isso tem extraordinário significado para a maioria de nós, e aí nos deixamos ficar. Parecemos incapazes de romper o nível verbal e penetrar além dele; mas, para compreendermos o sofrimento, temos de ultrapassar as palavras. Assim, enquanto eu estiver examinando esse problema, espero que também o examinareis intensa e claramente, sem sentimentalidade ou emocionalismo.

Ora, a menos que compreendamos a paixão, acho que não seremos capazes de compreender o sofrimento. A paixão é algo que mui poucos de nós realmente já experimentaram. Poderemos ter experimentado entusiasmo, que significa envolver-se completamente num estado emocional a respeito de alguma coisa. Nossa paixão é sempre por alguma coisa: pela música, pela pintura, pela literatura, por um país, por uma mulher ou um homem; é sempre o efeito de uma causa. Quando vos apaixonais por alguém, sempre ficais num estado de grande emoção, o qual é o efeito daquela causa; e a paixão de que falo é paixão sem causa. É estar apaixonado por tudo, e não simplesmente por uma certa coisa; nós em geral nos apaixonamos por uma certa pessoa ou coisa; e acho necessário perceber claramente esta distinção.

No estado de “paixão sem causa” há uma intensidade livre de todo apego; mas, quando a paixão tem causa, há apego, e apego é o começo do sofrimento. Em geral, temos apego — a uma pessoa, um país, uma crença, uma ideia — e quando o objeto de nosso apego nos é retirado ou, ainda, quando perde o seu significado, vemo-nos vazios, incompletos. Esse vazio nós procuramos preenchê-lo apegando-nos a outra coisa, a qual por sua vez se torna o objeto de nossa paixão.

Enquanto vou falando, tende a bondade de examinar vosso próprio coração, vossa própria mente. Eu não sou mais do que um espelho no qual estais vendo a vós mesmo. Se não desejais olhar, está perfeitamente certo; mas, se desejardes olhar, então olhai-vos claramente, “impiedosamente”, com intensidade — sem nenhuma esperança de dissolverdes vossas angústias, vossas ansiedades, vosso sentimento de “culpa”, porém com o propósito de compreender essa extraordinária paixão que sempre leva ao sofrimento.

Quando a paixão tem causa, torna-se luxúria. Quando há paixão por alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por uma certa espécie de preenchimento — então, dessa paixão resulta contradição, conflito, esforço. Lutais para alcançar ou para conservar um certo estado, ou para recuperar outro estado que existiu e se foi. Mas a paixão a que me refiro não dá nascimento à contradição, ao conflito. Não está em relação com nenhuma causa e, por conseguinte, não é um efeito. Deixai-me sugerir-vos que escuteis, simplesmente; não tenteis alcançar esse estado de intensidade, essa paixão que não tem causa. Se pudermos escutar atentamente, com aquela naturalidade que se verifica quando a atenção não é forçada por meio de disciplina, porém nascida do simples impulso para compreender, penso que então descobriremos por nós mesmos o que é paixão.

Há, na maioria de nós, pouquíssima paixão. Podemos ser lascivos, podemos estar ansiando por alguma coisa, desejando fugir de alguma coisa, e tudo isso nos confere uma certa intensidade. Mas, se não estamos despertos e não buscamos acesso a essa chama da “paixão sem causa”, nunca seremos capazes de compreender aquilo que chamamos sofrimento. Para compreender algo precisamos de paixão, da intensidade da atenção completa. Onde há paixão por alguma coisa, a qual produz contradição, conflito, não pode existir aquela chama pura da paixão; e aquela chama pura da paixão precisa existir, para que possamos pôr fim ao sofrimento, dissipá-lo completamente.

Sabemos que o sofrimento é um resultado, o efeito de uma causa. Amo alguém e essa pessoa não me ama — esta é uma espécie de sofrimento. Desejo preencher-me num certo sentido, mas para tanto não possuo capacidade; ou, se tenho capacidade, o mau estado de saúde ou outro fator qualquer impede-me o preenchimento — eis outra forma de amargura. Existe o sofrer da mente medíocre, da mente que está sempre em conflito íntimo, incessantemente lutando, ajustando-se, tateando, submetendo-se. Há o sofrimento ocasionado pelo conflito nas relações, e o motivado pela morte de alguém. Bem conhecemos essas diferentes formas de sofrer, e todas elas resultam de uma causa.

Ora, nós nunca enfrentamos o próprio sofrimento; sempre tratamos de racionalizá-lo, explicá-lo; ou temos um dogma, um padrão de crença que nos satisfaz, que nos dá momentâneo conforto. Alguns tomam uma certa droga, outros dão para beber ou para rezar — qualquer coisa que sirva para diminuir a intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento e a perpétua luta para fugirmos dele — eis o fado de todos nós. Jamais pensamos em extingui-lo, de modo que a mente nunca se prenda na rede da autopiedade, nunca se veja nas sombras do desespero. Não encontrando possibilidade de terminar o sofrimento, passamos, se somos cristãos, a divinizá-lo, em nossas igrejas, simbolizado nas agonias do Cristo. E, se vamos à igreja para adorar o símbolo do sofrimento, ou se tentamos racionalizá-lo ou esquecê-lo tomando uma bebida — tudo é a mesma coisa: estamos fugindo à realidade de que sofremos. Não me refiro à dor física, que a ciência moderna pode debelar com relativa facilidade. Refiro-me à de natureza psicológica, que impede a clareza, a beleza, que destrói o amor e a compaixão. É possível eliminar o sofrimento?

Acho que essa eliminação depende da intensidade da paixão. Só pode haver paixão quando há total abandono do “eu”. Nunca poderá uma pessoa “apaixonar-se” se não houver a completa ausência disso que chamamos “pensamento”. Como já vimos, o que chamamos pensamento é a reação de vários padrões e experiências da memória, e onde existe essa reação condicionada, não há paixão, não há intensidade. Só pode haver intensidade com a completa ausência do “eu”.

Há um sentimento da beleza que não está ligado ao que é belo e ao que é feio. Não quero dizer que a montanha não seja bela ou que não haja edifícios feios; mas há uma beleza que não é o oposto do feio, há um amor que não é o contrário do ódio. E a renúncia de que falo é aquele estado de beleza sem causa, o qual, por essa razão, é um estado de paixão. E pode-se transcender o que resulta de causa?

Escutai isto com toda a atenção. Posso não ser capaz de explicar-me com muita clareza, mas procurai apreender a significação das palavras, em vez de vos cingirdes apenas às palavras. Na generalidade, estamos sempre reagindo; a reação constitui o inteiro padrão de nossa vida. Nossa maneira de corresponder ao sofrimento é uma reação. “Reagimos”, tentando explicar a causa do sofrimento, ou dele fugir; mas nosso penar não tem fim. Só termina quando realmente o enfrentamos, quando compreendemos e transcendemos tanto a causa como o efeito. Procurar livrar-se do sofrimento pela prática de certos exercícios, ou pelo pensar deliberado, ou pelo recorrer a qualquer das várias modalidades de fuga à amargura — por nenhuma dessas maneiras se desperta na mente a extraordinária beleza, a vitalidade, a intensidade daquela paixão que inclui e transcende o sofrimento.

Que é sofrimento? Ao ouvirdes esta pergunta, como respondeis? Vossa mente trata logo de explicar porque sofremos, e essa busca de explicação desperta lembranças de passadas aflições. Dessa maneira, reverteis sempre, verbalmente, ao passado ou saltais para o futuro, num esforço para explicar a causa do efeito que chamamos sofrimento. Julgo, porém, que devemos ultrapassar tudo isso.

Bem sabemos o que nos faz pensar: pobreza, doença, frustração, não ser amado, etc. E, quando terminamos de explicar as várias causas do sofrimento, não lhe pusemos fim; não apreendemos realmente a extraordinária profundeza e significação do sofrimento, e muito menos compreendemos aquele estado que se chama amor. A meu ver, as duas coisas se relacionam mutuamente — o sofrer e o amor. E, para compreendermos o que é o amor, precisamos sentir a imensidade do sofrimento.

Os antigos falavam a respeito da terminação do sofrimento, tendo estabelecido um método de viver com que supunham extingui-lo. Muitos têm praticado esse “método de viver”. Monges do Oriente e do Ocidente o têm praticado, apenas com o resultado de terem endurecido a si próprios; a mente e o coração deles se fecharam. Vivem atrás das paredes de seu próprio pensamento ou atrás de paredes de tijolo e pedra, mas, realmente, eu não creio que eles tenham “passado além”, para sentir a imensidade dessa coisa que se chama sofrimento.

Deixar de sofrer é enfrentar o fato de nossa própria solidão, de nosso apego, de nossas vulgares exigências de fama, nossa ânsia de sermos amados; é estar livre do interesse egocêntrico e da puerilidade da autopiedade. E, depois de isso ultrapassarmos, e, talvez, de superarmos o sofrimento pessoal, resta ainda o imenso sofrer coletivo, o sofrer do mundo. Uma pessoa pode pôr fim à própria amargura, enfrentando em si mesma o fato e a causa do sofrimento — e isso deve ocorrer à mente que deseja ser completamente livre. Mas, uma vez terminado isso, há ainda o sofrimento oriundo da ignorância existente no mundo — ignorância que não é falta de instrução, de conhecimentos tirados dos livros, porém a ignorância que o homem tem de si próprio. A falta de auto-compreensão é a essência da ignorância, causadora do imenso penar da humanidade. E que significa, em verdade, sofrer?

As palavras não podem definir o sofrimento, assim como é impossível explicar verbalmente o que é o amor. O amor não é apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E quando uma pessoa acabou com o ciúme, com a inveja, com o apego, com todos os conflitos e agonias que sofreu, pensando amar — quando tudo isso terminou, resta ainda saber o que é o amor, resta ainda saber o que é o sofrimento.

Só se pode descobrir o que é o amor e o que é o sofrimento quando a mente rejeitou todas as explicações e já não está imaginando, já não está buscando a causa, já não se está entretendo com palavras ou rememorando prazeres e dores passados. A mente deve achar-se completamente quieta, sem uma só palavra, um único símbolo, uma única ideia. Descobre-se então — ou ele virá por si — o estado em que aquilo que chamávamos amor, aquilo que chamávamos sofrimento, aquilo que chamávamos morte, são a mesma coisa. Já não haverá divisão entre o amor, o sofrimento e a morte; e, não havendo divisão, haverá beleza. Mas, para compreendermos, para nos acharmos nesse estado de êxtase, necessita-se daquela paixão resultante do total abandono do “eu”.


Krishnamurti, O homem e seus desejos em conflito
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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