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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

 A COMPULSÃO POR PREENCHIMENTO


Não estamos todos nós procurando nos preencher em alguma coisa? O alpinista que escala os mais altos cumes — para ele esta é a ação de preenchimento; pelo casamento, pela prole, pelos filhos, vocês procuram se preencher; e o político, frente à multidão, ao recolher suas vibrações, com ela está se preenchendo. Se rejeitam essas expressões exteriores de ação e atividades tendentes ao preenchimento pessoal, voltam-se para as ações interiores, as ações psicológicas, espirituais: querem então se preencher numa ideia, em Deus, na virtude. Vemos, pois, que cada um deseja preencher-se à sua maneira — o que significa tornar-se algo por meio da identificação. Querem se preencher pela identificação com um partido político; renunciam a si mesmos e dizem que o partido tem toda a importância: o partido representa o que acreditam ser a Verdade; o partido por consequência representa um meio pelo qual se preenchem. O alpinista se preenche no deleite de ascender às grandes alturas, e o homem ambicioso se preenche no realizar a própria ambição. Ora, é isso o que estão fazendo, não é verdade?

O desejo de se preencher, o desejo de vir-a-ser, o desejo de realizar, ganhar, governa as nossas relações, não é verdade? Desejo algo de você e por isso lhe trato muito amavelmente, muito urbanamente. Ofereço-lhe ramalhetes, e trato com desdém aqueles de quem nada recebo. Tal é o processo constante de nossa existência. Senhores, existe de fato tal coisa — "preenchimento pessoal"? Compreendem? "Ser é estar em relação" — isto é um fato muito evidente. Não posso viver sem estar em relação com alguma coisa, e essa coisa se torna o meio pelo qual procuro me preencher — minha esposa, meu filho, minha casa, minha propriedade, meu quadro, meu poema, ou esta fala que lhes dirijo agora. Se com ela estou me preenchendo, ela é evidentemente uma maneira de dar expansão ao "eu"; eu é que sou importante, e não vocês, nem o de que estou falando. Consequentemente, o meio de preenchimento pessoal se torna muito mais importante para mim ou para vocês, do que a Verdade que se encontra no investigar se de fato existe preenchimento.

Todo esforço, nas condições atuais, se baseia no desejo de preenchimento; sabemos disso muito bem. Podemos tentar encobri-lo, disfarçá-lo com palavras e frases bem-soantes; essencialmente, porém, toda ação é produto do desejo de nos preenchermos por meio dela. Quando digo "Índia", identifico-me com a Índia, e a Índia se transforma no meio pelo qual realizo o meu preenchimento. Esses os fatos evidentes. Aprofundemos a questão um pouco mais. Existe a possibilidade de preenchimento? Da infância à maturidade e até a morte, estamos sempre em busca de preenchimento, por diferentes maneiras, não é verdade? — e sempre, infalivelmente, encontramos a frustração. Logo que se realiza uma ambição, apresenta-se outra ambição mais alta, e vivem assim numa luta incessante. Assim, pois, o nosso esforço de preenchimento, o nosso impulso de nos preencher, é sempre acompanhado do medo do insucesso, da frustração. Observem a mente e o coração de vocês, para verem se é ou não é verdade o que estou dizendo. Não são obrigados a aceitar o que digo.

Onde há o desejo, o desejo consciente ou inconsciente, de nos preencher, existe sempre, forçosamente, o medo da frustração. Vendo-nos frustrados, procuramos outra espécie de preenchimento, para fugir dessa frustração. Nos achamos, pois, encerrados nesta prisão perpétua do preenchimento e da frustração. Não acham, pois, muito importante que libertemos a nossa mente desse desejo de preencher-se numa ação, numa ideia, em qualquer coisa, enfim? Quando procuro me preencher por meio de minha esposa e de meus filhos, isso significa amor? Se desejo me preencher, discursando para grandes ou pequenos auditórios, estou realmente interessado na Verdade, tenho o desejo fundamental de libertar os homens, ou estou me preenchendo por meio dos meus ouvintes?

Senhores, esta não é uma reunião de discussão. Não nos importa, pois, descobrir se existe uma maneira diferente de resolvermos este problema, uma maneira diversa de estudá-lo, não baseada no desejo de preenchimento, uma ação que não vise um certo resultado? Não digam: "Sim, é o que diz o Bhagavad-Gita, o Upanishads" — colocando de lado a questão. Quando dizem uma coisa dessas, não estão realmente escutando à outra pessoa. E o que importa é o escutar. Com efeito, se souberem escutar, o milagre se realizará. Se souberem escutar tanto a melodia como o silêncio entre duas notas, talvez possam então descobrir a verdade relativa a qualquer coisa. Entretanto, enquanto estiverem comparando, rejeitando, aceitando, em constante atividade de explanação e rejeição, não estão de fato escutando.

Estou aventando talvez haja uma forma diferente de proceder sem se visar ao preenchimento pessoal, e que não esteja só ao alcance de poucos. Se eu for capaz de me compreender, de me observar nas minhas atividades diárias, e reconhecer que a todas as horas do dia estou ocupado em me preencher e, por conseguinte, vivendo na frustração e no temor — se eu for capaz de reconhecer tal coisa — e não somente aceitá-la — então não haverá mais preenchimento pessoal, meu, em coisa alguma. Se perceberem, realmente, momento por momento, nas suas atividades diárias, que toda ação é insuflada pelo desejo de preenchimento e que o preenchimento traz sempre frustração; se perceberem a coisa na sua inteireza, se a virem, bem desperto, sem argumentação, sem discussão, sem desejo de comparar — então, daí, resultará forçosamente uma nova ação, uma ação que não será de preenchimento pessoal, mas de outra natureza.

É bem óbvio que, quando cada um de nós está tentando preencher-se, há o caos na sociedade; e, a fim de dominar esse caos, a nossa mente apela para um determinado padrão ou condição. Se puderem perceber bem isso (se realmente estão escutando o que digo) reconhecerão esse fato verdadeiro, isto é, que não há preenchimento. Podem fazer tudo o que quiserem, se elevarem às maiores alturas — nunca há preenchimento. Se se reconhece este fato verdadeiramente, se o sentirmos interiormente, haverá então possibilidade de ação, a qual não será produto ou resultado da compulsão, do temor, da frustração.


Jiddu Krishnamurti, Autoconhecimento — Base da Sabedoria
http://pensarcompulsivo.blogspot.com 


Osho nos disse muito acertadamente: "Aceite sua solidão, aceite sua ignorância, aceite sua responsabilidade e, então, espere o milagre acontecer. Um dia, de repente, você se verá sob uma luz totalmente nova, pois nunca antes olhou para si mesmo. Nesse dia você, realmente, terá nascido. Antes disso foi apenas um processo de pré-nascimento". A compulsão por preenchimento é justamente a falta de um olhar sobre nós mesmos, é a fuga constante da realidade que se nos apresenta, pois ela é necessária para o nosso aprendizado - estamos aqui, na verdade, para reaprender, pois já sabemos de tudo, porém esse tudo está codificado nas profundezas do nosso ser, encoberto por muitas camadas de pregressas experiências acumuladas ao longo de nossas vidas pela falta de não nos conhecermos melhor. Quando aceitamos os fatos da vida como lições para lapidar esse diamante bruto que somos, então interpretaremos os fatos sob uma perspectiva totalmente nova e, como diz Osho: "Nesse dia você, realmente, terá nascido". Antes estávamos apenas tateando pela vida.



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