NOSSAS MENTES SÃO
COMO ÁGUAS ESTAGNADAS
A vida é
cheia de acidentes, que deixam em nossa mente muitas cicatrizes. À
medida que vamos envelhecendo a acumulação de acidentes e experiências,
a constante batalha da vida, deixam muitas cicatrizes na mente. Só
conhecemos sofrimentos e raras alegrias e os nossos problemas crescem
continuamente; tal parece ser a sina de quase todos nós, por maior que
seja a nossa capacidade intelectual, científica, etc. Parecemos carregar
a nossa mente com atividades de todo gênero e nossos corações vão
definhando com o sentimento da frustração, do medo e da solidão, sempre
presentes.
Bem poucos de nós somos felizes e conhecemos o
sentimento criador. Tendo sido postos numa rotina, torna-se muito
difícil curarmos a nossa mente, para que ela possa ser de novo fresca e sem
mácula. E, na procura dessa felicidade, desse sentimento, andamos a
perseguir tantas coisas, temos tantos desejos não
preenchidos! E a nessa sociedade, a nossa cultura, os nossos pais, os
nossos vizinhos, maridos, esposas, estão em todo momento assaltando-nos
a mente, moldando-nos, condicionando-nos, de modo que quase já não
somos indivíduos, embora tenhamos um nome próprio e uma fisionomia
especial. Se temos boa sorte, possuímos uma casa e um pequeno depósito
no banco, bem como uns poucos predicados, ou seja o que chamamos
individualidade. Mas, afora o nosso nome e apoucadas qualidades e
aquelas “águas estagnadas” que chamamos nossa mente, nós não somos, de
modo nenhum, indivíduos; somos entidades condicionadas, com muito pouca
liberdade.
Pensamos
que somos livres, quando escolhemos; mas não somos livres, somos? Onde
há escolha não há liberdade, porque justamente a escolha resulta do
nosso estado condicionado. Pensamos ter uma vontade própria que
exercemos na escolha. Entretanto, se observardes vereis ser essa
vontade o produto de inumeráveis desejos, de muitas formas de frustração
e medo; e que essas frustrações, temores, desejos são o produto do
nosso condicionamento, nosso fundo. Nessas condições, quando escolhemos
nunca somos livres. A escolha, em si, indica falta de liberdade. Um
homem realmente livre não faz escolha; ele é livre, não para fazer isso
ou aquilo, mas para ser. Enquanto fazemos escolha, não somos
verdadeiramente livres e não somos indivíduos reais.
É muito importante compreender isso, porque, em geral, vivemos escolhendo — uma
virtude, uma pessoa, uma ação — e a escolha conduz invariavelmente ao
sofrimento; não há boa escolha e má escolha. Só a mente livre da escolha
é capaz de perceber o que é verdadeiro. A verdade não vem através da
escolha. A verdade não vem em virtude da capacidade de escolher entre
isto e aquilo, entre o certo e o errado; pelo contrário, toda escolha
resulta de nosso condicionamento, que se baseia no temor e na avidez.
Nós, vós e eu, nos dizemos indivíduos, mas, de fato, não somos
indivíduos. Só quando estamos livres do fundo, do condicionamento,
existe a verdadeira individualidade; e isso requer muita reflexão e
investigação.
Falemos,
agora, acerca da criação, que acho tão essencial neste mundo tão cheio
de confusão, onde a mente se vê avassalada pelos sistemas, pelos métodos
e está, a todas as horas, em busca da certeza, através dos métodos, da
ação e, por conseguinte, impedida de ser livre, para ser criadora, para
compreender o que é aquela realidade criadora. Infelizmente, a maioria
de nós nunca experimenta diretamente uma coisa verdadeira, porque temos
lido muito e ouvido muitas conferências e acumulado muitos
conhecimentos; e, porque lemos, comparamos. Se soubéssemos escutar, não só
ao que estou dizendo, mas a todas as coisas da vida, com uma profunda
atenção interior, veríamos então surgir a liberdade, apesar de todos os
acidentes que ocorrem à mente, apesar de todas as frustrações, apesar de
todas as estúpidas atividades que a nenhuma parte nos conduzem.
É possível à
mente que está acumulando tanto saber, que tem tido tantas
experiências, através de séculos, e na qual cada acidente deixa um
resíduo que se chama memória, é possível à mente ficar livre de tudo
isso, de modo que se torne rejuvenescida, fresca? A meu ver o problema
real concernente a todos nós é o de renascer e nunca deixar espaço para a
memória, para o amanhã.
Acho de
suma importância compreender este ponto, porquanto a vida de quase todos
nós é uma série de continuidades, sempre quebradas e de novo
recomeçadas. Nossa vida diária de rotina, de ganhar o sustento, de
desenvolver atividades sociais, de frequentar reuniões políticas,
religiosas, sociais, é, todavia, uma continuidade, sempre na mesma
direção. Não há jamais uma libertação dessa continuidade, porque a mente
teme viver de maneira nova, sem saber nada, pois, sem dúvida, está
sempre procurando a certeza no “ser alguma coisa”.
Nosso
problema é que desejamos ser algo; cada um de nós, tanto o santo como o
pecador, deseja ser alguma coisa; e, desse modo, cultivamos a memória e,
por conseguinte, nunca há um findar. Nessas condições, nunca há um
descobrimento real; só há acidentes e a escolha dos acidentes. Eis o que
é a nossa vida. Permeando toda esta confusão, toda esta exigência de
ação, está sempre o temor.
Podemos
livrar-nos do passado e renascer com uma mente renovada? Pode-se viver
feliz, sem os trabalhos da busca intelectual, viver plenamente cada dia,
cada minuto, todo devotado a esse minuto? Se isso for possível, a vida
será simples, porque o homem feliz não tem problema algum. É o homem
infeliz, o homem frustrado que busca a ação, para vencer a sua
frustração.
É possível a
cada um de nós apagar o passado, dar-lhe fim, não através de um
processo gradual, mas eliminando-o de um golpe? Temos de fazer esta
pergunta a nós mesmos, sem nos preocuparmos com o resto. Porque, se
dizemos “como fazer isso?” destruímos a possibilidade de fazê-lo, porque
o “como” perpetua a memória da mente.
Parece-me
verdadeiramente importante viver completamente cada dia, com tanta
plenitude, tão criativamente, tão ricamente, que nunca tenhamos um
amanhã. Isso, afinal, é amor, não achais? O amor não conhece amanhã. O
amor não é produto da mente. Como só estamos cultivando a mente, não
sabemos amar; e a continuidade que damos à memória impossibilita
qualquer forma de amor; e esta é uma das nossas dificuldades.
Só
conhecemos infelicidade, sofrimento e frustrações; e daí parte a nossa
ação, criando mais infelicidade e mais sofrimento. Portanto precisamos estar livres do conhecido para que o desconhecido possa
ser. “O conhecido” é a mente e suas ocupações. A mente só é capaz de
raciocinar e a razão é produto da memória, do conhecido. A razão não
pode conduzir ao desconhecido, por mais ativos que estejamos —
praticando o perdão, sacrifícios, ritos, meditação. Enquanto a mente
tiver suas raízes no “conhecido”, não poderá existir o desconhecido.
Por
conseguinte, o nosso problema é realmente o de libertarmos a mente do
conhecido. A mente não pode libertar-se do conhecido, porque ela própria
é o conhecido, já que é resultado do tempo. Qual é, então, o problema?
Entendeis esta pergunta? Minha mente é resultado do conhecido; minha
mente só pode funcionar dentro do conhecido; e meu problema é este: como
pode a mente, resultado do tempo, deter o seu próprio movimento? Como
pode o pensamento cessar? O pensamento é resultado ou reação do
conhecido, de ontem, de todas as acumulações, das feridas, dos
acidentes, das frustrações, dos temores. Como pode cessar esse
pensamento? A mente não pode fazê-lo cessar. A mente não pode dizer “vou
pôr fim ao pensamento”, porque neste caso, o pensamento estaria
separado da entidade que diz “vou pôr fim”. A entidade que deseja esse
findar é produto do pensamento.
Por favor,
prestai atenção a esse extraordinário mistério, que a mente é incapaz de
sondar. Existe o assombroso mistério do desconhecido; e se não
permitimos que ele opere, a nossa vida é sem significação. Podeis ser
muito inteligentes, possuir a mente mais maravilhosa; mas, se não
houver a compreensão daquele desconhecido, se aquele desconhecido não
puder manifestar-se, nossa vida será sem significação. Não conheceremos
senão sofrimentos, perigos, frustrações. Nessas condições, se pudermos
ver que a mente não pode em tempo algum achar o desconhecido; que, sem o
desconhecido, nenhuma significação tem a vida, que é só tortura,
sofrimento, dor; e que a mente nada pode fazer, porque todo movimento da
mente é produto do conhecido, movimento do conhecido; se a mente
perceber tudo isso ela se tornará tranquila.
A
compreensão de que todo movimento da mente é produto do conhecido, essa
compreensão é meditação. Há necessidade de meditação na vida — não da
estúpida meditação ortodoxa, que não é meditação, mas auto-hipnose;
precisamos estar apercebidos de todo o mecanismo do viver, todo o
mecanismo da escolha, de como a escolha nega a liberdade, visto que a
escolha é produto do nosso fundo (background). A libertação da mente
desse fundo, a libertação da mente de todo condicionamento é a
verdadeira libertação. O processo pelo qual a mente se liberta do desejo
de ser alguma coisa, esse processo é meditação. Nele, dá-se a libertação
da mente do conhecido; então a mente se torna tranquila. Ora, essa
quietude, essa tranquilidade da mente não é uma coisa que se possa
conhecer ou experimentar, sem se “descondicionar” a mente. Não é uma
coisa que se possa procurar. Se a procurais, essa procura será apenas
uma outra forma de auto-hipnotismo, uma ilusão, sem nenhuma realidade.
Se a mente
puder libertar-se do seu condicionamento, dos seus desejos, de todas as
disciplinas, padrões, acidentes, haverá então o libertar da mente do
passado. Dessa liberdade virá o silêncio, a tranquilidade mental. Essa
tranquilidade não pode ser feita, mas ocorre quando a mente é livre. É uma
tranquilidade do movimento extraordinário quando não se visa coisa
alguma. Não há busca nessa placidez, a qual não resulta de nenhuma
frustração, experiência ou desejo. O que está num movimento
extraordinário, numa velocidade extraordinária, está quieto. E dessa
tranquilidade surge o mistério da criação, aquela verdade não mensurável
pela mente; e, sem essa verdade, a vida só pode significar mais
sofrimento, mais malefícios, mais frustração.
Somos
infelizes seres humanos que queremos escapar da nossa infelicidade por
meio de atividades de toda ordem; somos entidades solitárias e queremos
encher a nossa solidão com conhecimentos, atividades, divertimentos,
Escrituras; mas esse vazio não pode ser preenchido e só será possível
acabar com ele quando a mente compreender que está solitária, e não
tentar disfarçar a sua solidão ou dela fugir. É necessário passarmos por
essa solidão para alcançarmos a tranquilidade; então, por certo, se
manifestará a ação criadora da Verdade.
Esta
questão não requer um empenho contínuo. Tudo o que é contínuo é produto
de uma mente que está determinada, da mente que diz “eu serei”, e
perpetua, por conseguinte, a memória de si mesma. Mas a qualquer momento
em que se sinta um empenho sério, momento que poderá durar só meia hora
— e tanto basta — nesse momento existe a percepção sem escolha,
o percebimento de nós mesmos como num espelho, sem deformação, o
percebimento da coisa exatamente como é. Esse próprio percebimento do
fato produz a libertação, a liberdade. Quando, porém, no espelho do
percebimento vos vendo assim como sois, condenais e desejais modificar
essa imagem, reformá-la, dar-lhe um certo nome, desse modo, lhe conferis
uma continuidade. Mas, se ficardes simplesmente apercebido da imagem
refletida naquele espelho, vereis desaparecer tudo o que foi; e esse
percebimento traz a liberdade, uma quietude da mente em que há
felicidade.
O
importante é não dar-se raiz a nenhum problema. Nós temos problemas,
eles existem. Todo acidente é um problema; mas não lhe darmos um futuro,
não lhe concedermos um minuto em que ele possa enraizar-se, esse é o
problema — não aquele que estamos carregando em nossa mente. Quanto
mais a mente pensa num problema, tanto mais está preparando o solo para
ele enraizar-se. Pensai, observai, escutai, senhores.
O problema
não é o de saber como resolver um problema, mas como não dar ao problema
que tenho uma continuidade. É a continuidade — e não o problema de
ontem — que cria o problema. Se conheço, se percebo a verdade disso,
ocupar-me-ei, então, com o problema de modo inteiramente diferente;
darei cabo do problema, em mim mesmo, tão logo ele surja, com o não
deixá-lo enraizar-se — o que significa: não apreciar nem condenar; e
isso, com efeito, significa possuir a extraordinária qualidade da
humanidade.
A mente
trivial tem sempre algum problema; a mente pequenina está sempre
ocupada e essa ocupação prossegue dia por dia. A mente trivial nunca é
capaz de resolver o problema, porque tudo o que ela resolve, tudo o que
ela pensa a respeito do problema, é sempre trivial, limitado, confuso. O
que a mente trivial pode fazer é não dar ao problema um futuro. Se
a mente tem um problema e não se lhe dá um futuro, ela já não é trivial,
porque não está ocupada; a mente ocupada é que é trivial. A mente não
ocupada se assemelha a um rio, que tudo recebe, os esgotos da cidade,
cadáveres, coisas boas e coisas más; e, uma vez que está em movimento
constante, já não é água estagnada, mas uma torrente viva; nela, tudo
vive; ela não está morta. Assim, pois, a mente que tem um problema e
está ocupada não pode compreender o seu próprio problema; o que pode
fazer é só dar fim à sua continuidade e nunca proporcionar solo propício
ao problema no amanhã da sua memória.
Tudo isso
pode parecer muito difícil; mas não é; se realmente observardes como a
vossa mente gosta de dar continuidade a um problema dia após dia. Vossa
mente está ocupada com alguma coisa — com o que diz o vizinho, ou o livro que foi lido, ou com a finalidade da vida — traçando perenemente as suas
próprias rotinas. A mente ocupada é uma mente trivial, e a mente trivial
há de ter sempre problemas.
Krishnamurti, As ilusões da Mente
http://pensarcompulsivo.blogspot.com
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