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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A PERCEPÇÃO DO QUE É VERDADEIRO


Para se descobrir o que é verdadeiro devem ser postas à parte todas as conclusões, todas as formas de comparação e condenação; e isso se nos afigura dificílimo, porque somos educados, condicionados para condenar e justificar. Quando temos um problema tentamos achar uma solução em vez de tratarmos compreender o próprio problema; pois a solução está contida no problema e não fora dele. Para a maioria de nós mudança consiste apenas em troca de padrão; e se considerardes isso, vereis que troca de padrão constitui uma verdadeira transformação. Toda mudança operada na esfera do tempo é o mesmo movimento, modificado e continuado.

Ora, eu não estou falando sobre mudança de padrão, porém a respeito de uma profunda revolução psicológica — e isso significa libertar-se completamente da estrutura psicológica da sociedade. Mudança que se opera dentro do padrão social é um movimento do “conhecido” para o “conhecido”, não achais? Sou isto e quero tomar-me aquilo, que é meu ideal, e, assim, luto para mudar. Mas o ideal é uma “projeção” do conhecido, e o cultivo do ideal continua a não ser mudança nenhuma.

A revolução implica, por certo, um percebimento total de toda a estrutura psicológica do “eu”, consciente e inconsciente e que se esteja totalmente livre dessa estrutura sem pensar em “tornar-se outra coisa”. Quer estejamos apercebidos dela, quer não, a maioria de nós estabeleceu um padrão de pensamento e atividade, um modo de vida padronizado. No esforço para operarmos uma mudança em nossa vida, aceitamos consciente ou inconscientemente um certo padrão e pensamos ter mudado; mas, na realidade, não houve mudança nenhuma.

Como tenho salientado, se não há compreensão do inconsciente, toda “mudança” psicológica é simples ajustamento a um padrão estabelecido pelo inconsciente. E a crise atual — não apenas a crise externa, mas também a crise existente na consciência — exige uma revolução: não me refiro à revolução social ou econômica, que é muito superficial, porém à revolução no inconsciente — à completa libertação da estrutura psicológica da sociedade, total abandono da ambição, da inveja, da avidez, do desejo de poder, posição, prestígio, etc. Esta é a única revolução, porquanto, sem ela, nada de novo pode existir; sem ela, ficamos apenas acalentando ideias, conceitos e, por conseguinte, há sempre sofrimento. Só tem fim o sofrimento com essa revolução total.

A questão, pois, é: Como operar essa mudança interior, essa revolução total? Se fazemos um esforço deliberado, consciente, para modificar-nos, geramos conflito, luta; e a mudança nascida de conflito, luta, só pode produzir mais sofrimento.

Ora, é possível promover uma revolução na psique, sem esforço consciente? Tenho explicado cuidadosamente que o inconsciente é o depósito do passado. No inconsciente estão armazenadas não só as experiências do indivíduo, mas também as da raça. Ele é o repositório de toda a luta do homem no decurso das idades: sua busca de Deus, sua rejeição de Deus, sua adoração do Estado, sua identificação com a nação, com uma ideia, etc. A totalidade de tudo isso é o passado, é o fundo inconsciente de cada um de nós, em conformidade com o qual reagimos. Podemos tentar compreender o inconsciente por meio de exame e análise, mas isso, é óbvio, não produzirá revolução. Podeis modificar, reformar; mas vossa reforma tornará necessária nova reforma; não é revolução, não é a completa libertação do passado. Necessita-se de uma mente jovem, nova, purificada, e essa mente só pode existir quando nos libertamos psicologicamente do passado.

Mas como poderá operar-se essa revolução, sem esforço, sem se procurar fazer algo nesse sentido? Todo esforço ou luta que visa transformação envolve contradição, e a contradição acentua o conflito já existente; portanto, não há transformação. Só se pode perceber o que é novo num estado de purificação, isto é, quando o passado deixou de ter qualquer significação psicológica.

A inocência, como deveis saber, é uma das exigências da sociedade moderna, mas essa exigência é ainda muito superficial. Para as pessoas que têm passado por muitos sofrimentos, que se veem oprimidas pelo sentimento de culpa, pela ansiedade, pelo medo — para essas pessoas a “inocência” é uma coisa muito importante. Mas a “inocência” de que falam é o oposto da complexidade, o oposto do sofrimento, da angústia, da luta, da confusão. A verdadeira “inocência”, como o amor, não é um oposto. O amor não é o oposto do ódio. Só nasce o amor quando o ódio, em todas as suas formas, desapareceu. Do mesmo modo, a mente deve ser “inocente” (ilesa), embora tenha passado por todas as formas de experiência. Para que a mente realize esse estado de “inocência” devem terminar as acumulações de experiência — as quais são ainda o passado, ainda fazem parte do fundo inconsciente.

Ora, como será isso possível? Dizem as pessoas religiosas que devemos recorrer a Deus, pormo-nos num estado de receptividade para a Graça de Deus. E há práticas religiosas (quase ia dizendo “truques”) de toda espécie, que servem para persuadir, influenciar ou controlar a mente humana, a fim de torná-la capaz de alcançar, de uma ou de outra maneira, aquela “inocência”. Há também os que, com o uso de drogas diversas, procuram “experimentar” um estado exaltado de sensibilidade perceptiva, um maravilhoso estado de bem-aventurança. Mas a inocência não pode ser “produzida” com o uso de nenhuma droga, de nenhum método de ioga, nenhuma crença ou rejeição de crença, ou pelo aguardar a Graça de Deus. Tudo isso implica esforço, busca, ânsia de fugir ao fato — o que é. E a inocência só pode vir à existência com a total libertação do “conhecido” — isto é, com o morrer para o “conhecido”, morrer para o passado, para as lembranças agradáveis, para todas as coisas que temos acalentado, formado, acumulado e que constituem nosso caráter.

Infelizmente, a maioria de nós não deseja morrer para nada, principalmente para aquilo que nos dá prazer, para as lembranças de coisas que temos experimentado e a que ficamos apegados. Preferimos encontrar um refúgio, viver numa ilusão. Mas, precisamos morrer para o “conhecido”, a fim de que se torne existente a “inocência”. Isto não é uma mera declaração verbal ou conclusão. É necessário morrermos realmente para o “conhecido”, para o passado. Mas não podemos morrer para o conhecido, se temos um motivo para morrer; pois todo motivo está enraizado no tempo, no pensamento; e o pensamento é a reação do fundo (background) da consciência, o qual é o “conhecido”.

Todos estamos condicionados — como ingleses, russos, hinduístas, cristãos, budistas, o que quer que seja. Somos moldados pela sociedade, pelo ambiente; nós somos o ambiente. A maioria de vós, sem dúvida, crê em Deus, em Jesus, porque nesta crença fostes educados; ao passo que na Rússia as pessoas foram condicionadas para não aceitarem nada disso. A totalidade do condicionamento da mente é o “conhecido”, e esse condicionamento pode ser quebrado, mas não por meio de análise. Só pode ser quebrado quando considerado de maneira negativa, e essa maneira negativa não é o oposto da positiva. Assim como o amor não é o oposto do ódio, assim também esse “negativo” não é o oposto de “positivo”, que é exame, análise, esforço para alterar o padrão existente ou para ajustar-se a um padrão diferente. Tudo isso consideramos “positivo”; e o “negativo” de que falamos não é o oposto disso. Não é, tampouco, uma síntese. Síntese implica reunião dos opostos, mas isso produz novo conjunto de opostos. O “negativo” de que falamos é a total rejeição dos opostos. Quando rejeitamos totalmente o método (que faz parte de nosso condicionamento) pelo qual se procura modificar a psique por meio de esforço, de análise, então o nosso método é negativo; e só nesse estado de negação a mente pode ser “inocente”. Essa é a mente verdadeiramente religiosa.

A pessoa religiosa não é aquela que crê, que vai à igreja todos os dias ou uma vez por semana; não é a que tem um credo, que está escravizada a dogmas e superstições. A mente religiosa é, deveras, uma mente científica; científica, no sentido de que é capaz de observar os fatos sem desfigurá-los, de ver a si própria tal como é. O libertar-se do condicionamento requer, não uma mente crédula, disposta a aceitar, porém aquela capaz de se observar de maneira racional e sã, e de perceber que, a menos que seja despedaçada a estrutura psicológica da sociedade, ou seja o “eu”, não pode haver “inocência”; e que, sem “inocência”, a mente nunca poderá ser religiosa.

A mente religiosa não é fragmentária, não divide a vida em compartimentos. Ela abarca a totalidade da vida — a vida de aflição e dor, a vida de alegrias e satisfações passageiras. Uma vez que está totalmente livre da estrutura psicológica da ambição, da avidez, da inveja, da competição, de toda exigência de mais, acha-se a mente religiosa num estado de “inocência”, e só assim a mente pode transcender a si própria, e não quando crê, meramente, num além ou nutre uma certa hipótese relativa a Deus.

A palavra “deus” não é Deus; o conceito que tendes de Deus não é Deus. Para se descobrir se existe isso que se pode chamar “Deus”, devem desaparecer totalmente todos os conceitos verbais e formulações, todas as ideias, todo pensamento que seja reação da memória. Só então existe aquele estado de “inocência” em que não há automistificação, nem o querer ou desejar resultado; e então podereis descobrir por vós mesmo o que é verdadeiro.

Assim, a mente já não está em busca de experiência. Se ela busca experiência, é imatura. À mente “inocente” já não interessa a experiência. Está livre da palavra, ou seja da capacidade de reconhecer com seu fundo de conhecimento (background). O reconhecimento implica associação, que pode ser verbal ou empírica e sem essa associação nada se pode reconhecer. A mente religiosa, ou “inocente”, está livre da palavra, livre de conceitos, padrões, formulações, e só assim pode uma mente descobrir por si própria se há, ou não há, o Imensurável.


Krishnamurti - O homem e seus desejos em conflito
http://pensarcompulsivo.blogspot.com

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