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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

NÃO HÁ SOLUÇÃO PARA 
NENHUM PROBLEMA PSICOLÓGICO


 
Pergunto a mim mesmo por que desejamos permanência. Ora, por certo, o desejo de permanência é uma reação ao conflito. Vemo-nos num estado de constante desejar e não desejar, de "ida e vinda", de esperança e desespero. Trava-se a todas as horas uma batalha dentro de nós mesmos, e desejamos um pouco de paz, um lugar aonde nos refugiarmos, um Deus para nos dar o descanso completo dessa batalha de ansiar preenchimento e não consegui-lo, de amar e não ser correspondido, etc. Assim, nosso desejo de permanência é uma reação ao conflito. Discutiremos mais adiante sobre se existe essa coisa chamada "permanência"; mas primeiramente devemos ver com clareza que desejamos permanência, paz duradoura, unicamente porque nos achamos em conflito. Se nenhum conflito houvesse em nós, não procuraríamos um estado de paz permanente.

Ora, a questão é se a mente pode, ou não, libertar-se de qualquer espécie de conflito. É possível a vós e a mim ficarmos totalmente livres de conflito? Ou a vida tem de ser, inevitavelmente, uma luta perpétua, do nascimento à morte? Luta, contradição, conflito dos opostos — se admitimos que tudo isso é inevitável, o problema então é de como tornar o conflito o mais suave, o mais "espiritualizado" possível. É o que tenta a maioria das civilizações. Devemos, pois, ver bem claro se estamos apenas tentando "espiritualizar" o conflito, ou se desejamos eliminá-lo completamente. Estamo-nos referindo ao conflito psicológico existente em cada um de nós e que posteriormente se "projeta" no mundo, como conflito entre grupos, raças e nações.

Para mim, o simples "espiritualizar" do conflito interior não resolve o problema, porque o conflito continua existente; e o conflito é sempre muito destrutivo. Por mais sutil e "espiritualizado" que se torne, por mais "cientifico", "sofisticado", analisado ou racionalizado que o façamos, o conflito torna a mente embotada, estúpida. Torna a mente incapaz e transcender a si própria. Isso me parece estar bastante claro e não necessitar de tais explicações.

A questão, pois, é: Como podeis ficar totalmente livre de conflito? Isso não significa que devais procurar um método ou sistema, porque, nesse caso, ficais vinculado ao sistema e começa novo conflito: o conflito entre o que sois e o que deveríeis ser.

É possível eliminar completamente o conflito? Esta é que é a questão. Para mim, a eliminação do conflito é decididamente essencial. Não porque eu seja uma pessoa indolente ou de temperamento inativo, mas porque vejo o que o conflito causa. Exteriormente, pode-se ver muito bem o que o conflito acarreta: competição entre os vários grupos comerciais e políticos, conducente a guerras devastadoras entre este e aquele país. E interiormente ele é muito pior, pois é o conflito interior que "projeta" o conflito exterior. Quando há conflito interior, há uma tensão que poderá determinar certas atividades artísticas. Poderá essa tensão expressar-se no surrealismo, ou objetivismo, ou não-subjetivismo; ou o indivíduo poderá escrever um livro — ou acabar no hospício.

Ora, fomos educados desde pequenos para a competição. Nossos exames são "competitivos", e na escola procuramos obter "notas" melhores do que as dos outros — conheceis bem o sistema. Fomos criados nessa base: psicologicamente sempre desejando mais e nos servindo de nossas funções para alcançarmos posição. E pode-se ver o que o conflito causa à mente. Com efeito, ele torna a mente velha, insensível, embotada. Um homem ambicioso está perenemente em conflito, não conhece um só momento de paz; nunca saberá o que é amor. E desde o começo somos estimulados a ser ambiciosos. O conflito está firmemente arraigado em nós, em diferentes níveis, superficial e muito profundamente.

Ora, é possível viver neste mundo — psicologicamente e, por conseguinte, exteriormente — sem conflito de nenhuma espécie? Por favor, não digais ser possível ou impossível, pois não o sabeis. Digo ser possível, porque para mim é um fato; mas para vós não é um fato e, por conseguinte, precisais averiguar.
 
É possível eliminar o conflito, não parcialmente ou em pequenos fragmentos, porém, totalmente? Isto é, pode a mente ficar livre do passado, deixar de dizer "Serei algo amanhã"? Ser livre de conflito implica a cessação completa do motivo ou intenção de "chegar a alguma parte", alcançar algo: alcançar a fama, a virtude, cultivar o ideal, repudiar a cólera, a fim de ser mais pacífico, etc.

Mas isso não é um simples jogo infantil; requer grande soma de compreensão, percebimento.

Psicologicamente, terminar o conflito é "ser nada"; e a maioria de nós tem medo de enfrentar o "ser nada" — literalmente nada. Mas, afinal de contas, que sois vós? Que são todos os V.I.P.s (very important people) — a gente muito importante? Tirem-se-lhes os títulos, as posições, as decorações, todas essas bugigangas, e eles ficaram reduzidos a nada. E quer-me parecer que nós, a gente comum, também estamos tentando, de várias maneiras, tornar-nos algo; mas, interiormente, não somos absolutamente nada. E, porque não ser nada? Sejais nada – mas não procureis tornar-vos nada, pois isso só vem criar outro problema.

Ora, estamos tratando de uma questão muito séria e não de permutar uma poucas palavras e escutar umas poucas ideias. Ser realmente nada implica tremenda meditação interior — meditação real. Mas, por ora, não vamos tratar disso.

O importante é ser nada, imediatamente, sem procurar manter esse estado; porque, se sois nada, nada sois. Não tendes a necessidade de manter esse estado. É a ideia de que deveis alcançar, ou manter um certo estado, que gera o conflito, porque então vos vedes de novo empenhado na luta para vos tornardes algo.

Temos, em seguida, a questão de se há alguma coisa permanente. Existe alguma coisa permanente? Que se entende por "permanência"? Este prédio durará talvez uns cem anos, se não for destruído pelo fogo, por uma bomba, ou o que quer que seja. Mas necessitamos, psicologicamente, de tal permanência? Precisamos da perpetuação disso que somos, com todas as nossas lutas, nossa mediocridade, nossa insignificância, nossos desesperos, angústias, sentimento de culpa? Direis: "Isto é apenas superfície, e nós temos de ultrapassá-la; e ultrapassá-la significa encontrar algo permanente". E projetais, assim, a ideia da alma como entidade permanente; nutris ideias a respeito do céu, de Jesus, e credes em Deus. Mas, existe alguma coisa permanente? 
 
Quando consideramos este assunto, quando investigamos e compreendemos, não descobrimos que nada existe de permanente, exterior nem interiormente? Biologicamente, estai-vos modificando todos os dias, todos os minutos; vosso sangue muda de sete em sete anos. Mas, psicologicamente, intelectualmente, estais apegados a certas ideias, e não há bomba que possa destruir essas ideias. Sois ingleses, católico, isto ou aquilo, e assim ficais pelo resto da vida; nada pode abalar vossa posição. Isso, pois, é que é permanência, não? E se essa permanência for apenas uma reação à contradição, ao conflito — como de fato é — que acontece? Se tudo está realmente em fluxo, em movimento, se a vida flui incessantemente, como pode então a mente — sustentada pelo tempo, pelo reconhecimento, e apegada à permanência — como pode a mente reconhecer o atemporal, o ilimitado, o irreconhecível?

Sabeis que para os que são religiosos, no sentido convencional, Deus é uma entidade permanente, que existe de eternidade em eternidade. E se não temos inclinação religiosa, inventamos substitutos: o Estado, a ideologia, esta ou aquela Utopia. Quer estejamos em Moscou, quer em Roma, a coisa é essencialmente a mesma.

Ora, não é possível, psicologicamente, sairmos do tempo e não pensarmos absolutamente em termos de permanência ou impermanência? Não pode uma pessoa viver, existir num tempo — considerado como hoje e amanhã — que todas as agonias do anseio, todas as lembranças e expectativas sejam coisas mortas?

Agora, para um problema tão sério como este, não há resposta "sim" ou "não". Há apenas um processo de investigação, o qual revela o que é verdadeiro e o que é falso. Essa revelação, essa percepção é muito mais importante do que o achar uma resposta. Não há solução para nenhum problema psicológico. Há solução para os problemas mecânicos. Mas um problema psicológico tem de ser investigado, tendes de penetrá-lo mui profundamente, por vós mesmo; e conforme olhais, investigais, percebeis, o problema desaparece. Deixa de ser uma carga, estais livre dele. O inteiro processo de pensar, tal como o conhecemos, cessa; e, então, talvez, apresente-se algo totalmente novo.   

 
 
Krishnamurti,
O Homem e Seus Desejos em Conflito
 
 

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