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domingo, 21 de julho de 2019

O MECANISMO CONDENATÓRIO 
E COMPARATIVO



Parece-me que uma das coisas mais difíceis da vida, é saber olhar qualquer coisa como um todo, ter o senso da totalidade das coisas; e acho de grande importância compreender por que razão a mente tão invariavelmente fragmenta a ação imediata em padrões, em parcelas, por que razão parece incapaz de apreender, num relance, o total significado da existência. Não sei se já considerastes, por pouco que seja, esta questão, deste ponto de vista. Em geral, nos acercamos das complexidades, dos problemas, das misérias e lutas da vida com uma visão parcelada, uma mente diminuída, condicionada, moldada pelo meio social ou cultural, pela sociedade em que vivemos. Nunca parecemos capazes de apreender imediatamente o significado de coisa alguma. Em vez de abraçarmos, num só olhar, a árvore inteira, parece que primeiro só lhe vemos uma folha e, depois, gradualmente, começamos a ver a árvore inteira. Assim sendo, acho importante averiguar porque a mente, pelas aparências, não é capaz de perceber de pronto a verdade contida numa coisa, e de deixar essa verdade operar, em vez de querer ela própria atuar sobre a verdade. Afinal de contas, a Realidade, Deus, ou como quiserdes chamá-lo, não pode ser conhecido pouco a pouco, não pode ser juntado peça por peça, como uma roda; tem de ser percebido imediatamente, porque do contrário não o podemos ver.

Fomos em geral preparados, penso eu, para considerar este problema com uma acumulação de conhecimentos, por meio de análise ou da prática da virtude. Se observamos as atividades diárias de nossa mente, todas as suas maneiras de operar, percebermos que ela está sempre colecionando, aprendendo, adquirindo, compondo as coisas pouco a pouco e esperando, desse modo, apanhar algo existente além desse processo de acumulação; e isso pode ser o mais grave dos erros.

Que é que estamos buscando? Se somos hinduístas, ou cristãos, ou outra coisa qualquer, todos estamos tentando descobrir algo existente além do mero mecanismo da mente, não é verdade? É esta busca que chamamos religião. Praticamos disciplinas várias, meditamos de acordo com certos sistemas, sempre na esperança de encontrar aquilo que não é meramente o resultado de uma mente cultivada. Mas, sem dúvida, para se compreender e experimentar o que existe além da mente, é necessário, não a observância meticulosa de um processo de abandono do "eu", do "ego", do "meu", mas o completo abandono dele, sem nenhum processo de "cultivo". Não sei se estou esclarecendo bem este ponto. Embora reconhecendo a importância de nos livrarmos do "eu", do "ego", todas as nossas atividades, todos os nossos pensamentos, e práticas, e disciplinas religiosas, estão, com efeito, nutrindo o "eu". E, percebendo a futilidade do analista e da coisa analisada, percebendo que as várias modalidades de substituição, as várias disciplinas só estão sutilmente reforçando o "eu" e constituindo, por conseguinte, um empecilho — percebendo tudo isso, pode a mente abandonar de todo esse mecanismo?

Expressando-o de maneira diferente: nossas mentes estão condicionadas, não? A civilização, a sociedade em cujo meio somos educados, e várias outras influências, moldam-nos a mente, desde crianças, para sermos hinduístas, comunistas, etc. E pode a totalidade da mente — tanto a consciente como a inconsciente — ser "descondicionada", não gradualmente, pouco a pouco, porém instantaneamente? Esse é, sem dúvida, um dos nossos problemas. Nossas mentes são moldadas, condicionadas, conservadas num molde; e por mais que a mente se esforce para quebrar o molde em que se acha presa, o próprio esforço que faz, resulta de seu condicionamento, porque o pensador não está separado do pensamento; o produtor do esforço para fugir da prisão do "eu", faz parte também do "eu". Não é exato isto? E quando o percebemos, e compreendemos a sua verdade, pode a nossa mente abandonar de todo essa maneira condicionada de pensar?

Seria conveniente considerarmos aqui o problema do escutar, o que significa escutar uma coisa. Quando escutamos o que outro diz, de que maneira o escutamos? Se escutamos com a intenção, o desejo de acharmos alguma coisa, o desejo de descobrir, de aprender, não há então a verdadeira escuta, porque estamos interessados numa aquisição. O escutar se torna então mero ouvir, sem muita significação. Mas se somos capazes de escutar com aquela atenção que não visa a objetivo algum, acho que então acontece algo revolucionário, inesperado, não premeditado.

Sabeis, senhores, que todos estamos em busca de alguma coisa; e grande maioria de nós não sabe o que é que realmente está buscando. Para buscar, investigar, requer-se, em primeiro lugar, liberdade; mas nós, evidentemente, não somos livres e nossa busca, por conseguinte, nada significa. Ela é apenas um desejo de mais conforto, mais segurança, e, assim sendo, somos prisioneiros de nosso desejo. O que buscamos é o preenchimento de nossos próprios anseios e aspirações, e por isso nossa busca não é a verdadeira busca. Se observarmos a nós mesmos, notaremos a existência desse desejo constante de encontrar um pouco de paz, alcançar um permanente estado de conforto, de perfeita segurança; e esse desejo nos faz seus prisioneiros desde o começo.

Por conseguinte, o que me parece importante não é descobrir se há uma Realidade, Deus, isto ou aquilo, porém compreender o mecanismo de nossa própria mente. Sem autoconhecimento, sem conhecermos a nós mesmos, toda busca que empreendermos será de todo vã. Mas é muito difícil conhecermos a nós mesmos? O "eu" é constituído de nossos desejos, nossa avidez, nossas ambições, "motivos", invejas, e das crenças que a mente abriga. E conhecer esse processo, em sua totalidade — tanto à nível consciente como inconsciente — é verdadeiramente essencial para que possamos descobrir qualquer coisa nova. E isso, no entanto, não nos preocupa. Não nos interessa o autoconhecimento, o conhecimento das operações de nossa própria mente. Pelo contrário, procuramos sempre evitá-lo, impondo à mente certos padrões, de acordo com os quais procuramos viver.

Decididamente o começo da sabedoria está no autoconhecimento. Desconhecendo a nós mesmos, que somos uma entidade muito complexa, todo o nosso pensar tem muito pouca significação. Se a mente desconhece os seus próprios preconceitos, suas vaidades, temores, ambições, avidez, como será capaz de descobrir o que é verdadeiro? Ela só pode especular a respeito do verdadeiro, ter crenças, dogmas, impor restrições a si mesma, pensar mecanicamente, seguir a tradição, e desse modo criar mais e mais problemas. O importante, então, é compreender as operações do "eu"; e compreender o "eu" não significa alterá-lo, não significa negá-lo ou controlá-lo, porém, observá-lo. Se desejo compreender uma coisa, não posso condená-la, não é verdade? Se desejo compreender uma criança, não devo condená-la nem compará-la com outra criança; devo estudá-la, observá-la, notar todas as suas maneiras. De modo semelhante, se desejo compreender o mecanismo total de minha mente, tenho que observar, pôr-me vigilante, passivamente apercebido do meu modo de falar, dos meus gestos, dos "motivos" ocultos; e isso não é possível, se condeno ou comparo. Penso que compreender a totalidade da mente é, com efeito, a coisa mais importante da vida. E só se pode observar as operações da mente nas relações, pois nada pode existir em isolamento. Só existimos em relação; e as relações são o espelho em que se observam as atividades mentais.

A mente, pois, é condicionada, resultado do passado; todo o nosso pensar é "mecanismo" do passado. E o problema consiste em saber se a mente, em tais condições, pode compreender o Atemporal, o que existe além dela própria.E o que se faz necessário é uma revolução religiosa. E a revolução religiosa só se pode verificar, quando cada um de nós se liberta de todos os dogmas, crenças e rituais. Por certo, só então é a mente capaz de compreender a si mesma e alcançar aquele estado em que não há pensar — pois pensar é movimento do passado.

Atualmente, procuramos resolver os nossos problemas pela ação do pensamento; e foi o próprio pensamento que criou os problemas, pois o pensamento é resultado de "mecanismo" do passado. Todo pensar é condicionado. Se observardes, vereis que não há livre pensamento, porque pensar é um movimento do passado, reação da memória. Entretanto, estamos fazendo uso do pensamento como meio de descobrir o Verdadeiro! Mas o que é verdadeiro só pode ser descoberto quando a mente se acha tranquila de todo, sem ter sido posta tranquila, sem ter sido disciplinada, coagida. Só se torna existente a tranquilidade, quando, por meio do autoconhecimento, se compreende a totalidade da mente. O autoconhecimento vem-nos pela vigilância, pela atenta observação do pensamento, observação em que não existe uma entidade observando o pensamento. Só se torna existente o observador do pensamento, quando há condenação, quando há um desejo a dirigir o pensamento. Afinal de contas, o pensador faz parte do pensamento, não é exato? Mas separamos o pensador do pensamento, por razões de segurança própria. Criamos esta divisão, em virtude de nosso desejo de termos uma entidade permanente, a que chamamos espiritual. Mas se observardes com muita atenção, vereis que não há permanência de espécie alguma. Só há pensar, e o pensar é movimento do passado, da experiência, do conhecimento.

Ora, enquanto existir pensador separado do pensamento, tem de haver conflito, "processo" da dualidade, intervalo entre a ação e a ideia. Mas não pode a mente "experimentar" aquele estado extraordinário em que só há pensar e não existe pensador, se se põe vigilante, sem condenar ou comparar? O mecanismo condenatório e comparativo constitui a característica do pensador separado do pensamento. Só existe pensamento, e o pensamento é impermanente. Percebendo a impermanência do pensamento, a mente cria o permanente — Atman, "eu superior", etc. Mas esse permanente é ainda mecanismo de pensamento. O pensamento é condicionado, resultado do passado, de experiência e conhecimento acumulados e, portanto, nunca conduzirá ao desconhecido — o atemporal. Afinal, o "eu", o "ego" nada é senão um feixe de lembranças; e ainda que lhe atribuamos uma qualidade espiritual, um valor permanente, ele continua a existir na esfera do pensamento, sendo, portanto, impermanente.

O mais difícil, para a maioria das pessoas, é abandonar essa qualidade "permanente" da mente, que é invenção dela própria. A maioria deseja a permanência sob esta ou aquela forma e, assim, a mente atribuiu uma qualidade de permanência àquilo que ela chama Realidade, Deus. Certo, nada existe permanente. A Realidade não é contínua, não é permanente, porém uma coisa que se precisa descobrir momento por momento. Quando a mente tem uma "experiência" momentânea de algo real, logo deseja tornar permanente essa realidade, e o permanente se torna assim passado, fica aprisionado na esfera do tempo. Mas só pode existir o novo quando o passado é morto. Eis por que precisamos morrer para todas as experiências. Só quando a mente é simples, fresca, inocente, completamente livre do conhecimento, é capaz de percepção imediata.

Toda forma de experiência se torna mais um meio de reconhecimento, não é verdade? Tendo-me encontrado ontem convosco, reconheço-vos hoje. A mente é mecanismo de reconhecimento e com esse mecanismo de reconhecimento queremos experimentar o Real. Mas o Real não pode ser assim experimentado, porque irreconhecível. Se o reconhecerdes, neste caso ele vem do passado, está contido na memória, é coisa conhecida; portanto não é o Real. A mente, por conseguinte, deve pôr-se no estado em que não existe experimentador, e isso significa que o mecanismo de reconhecimento tem de cessar. Descobrireis que isto não é tão fantástico como parece. Ao assistirdes a um belo por do sol, que acontece? Há uma imediata reação a esta beleza, e logo começais a comparar; o por do sol que vistes na semana passada foi muito mais belo. Estabeleceu-se, assim, uma relação — a experiência nova relacionada com o passado. Esse mecanismo de comparação é ato de reconhecimento e este impede a mente de experimentar sempre coisas novas. A mente, afinal de contas, é o resultado do conhecido, e está sempre procurando apreender o desconhecido em termos do conhecido. A vinda do desconhecido só é possível, quando estamos livres do conhecido. O conhecido é o "eu", e quer o coloquemos no mais alto, quer no mais ínfimo nível, ele é sempre "eu" — experiência acumulada, mecanismo de reconhecimento. O "eu" é incapaz de perceber a totalidade dessa coisa extraordinária que chamamos "a vida", e por essa razão é que fragmentamos o mundo, tornando-nos cristãos, hinduístas, budistas e muçulmanos; por essa razão é que despedaçamos a Índia em pequenas seções de fala diferente. Tudo isso representa o mecanismo de uma mente muito limitada, presa na esfera do conhecido.

Torna-se necessária a libertação do conhecido, para que possa existir o desconhecido. Isto é um fato que salta aos olhos. Porque a Realidade, Deus, ou como quiserdes chamá-lo, não pode ser reconhecido. O conhecimento, o reconhecimento, resulta do passado, e a mente que busca o desconhecido armada do conhecido, nunca o encontrará. Só quando a mente está livre do conhecido pode existir a "outra coisa".

Agora, escutando o que estou dizendo, que representa um fato muito óbvio, que acontece? Se lhe concedeis toda a atenção, não precisais de perguntar como é possível ficar livre do conhecido. A mente não pode, em tempo algum, libertar-se do conhecido; se o tenta, só cria mais um "conhecido". Mas se prestais toda a atenção a esse fato, vereis que o próprio fato começará a operar, exatamente como a vida presente no grão abre caminho para brotar do solo. A mente, portanto, nada mais tem que fazer. Se a mente atuar sobre o fato, só poderá operar parceladamente — juntar muitas parcelas, para achar o todo. Mas o ajuntamento de muitas partes não constitui o todo. O todo tem de ser percebido instantaneamente. Eis porque importa compreender as operações da mente, mas não por meio de livros, da leitura do Gita ou Upanishads, mas pela observação de vós mesmo em relação com vossa esposa, vossos filhos, vosso vizinho, vosso patrão, pelo observar a maneira como falais ao vosso criado ou ao trocador de ônibus. Começareis assim a descobrir até que profundidade a mente se acha condicionada. E nesse próprio descobrimento do funcionamento da mente, encontra-se a liberdade. O importante é descobrir e não meramente repetir. Graças a esse descobrimento constante das operações do "eu", a mente se torna muito tranquila, sem o emprego de repressão, restrição, sem lhe impor um molde. E para essa mente, já que está livre do desconhecido, existe a possibilidade de manifestar-se o desconhecido.


Krishnamurti, Da Solidão à Plenitude Humana
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