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domingo, 2 de julho de 2017

O PRAZER, A BELEZA,
 A RELIGIÃO E A MORTE


Reflexões com Khalil Gibran


Um ermitão que visitava a cidade uma vez por ano, acercou-se e disse: "Fala-nos do Prazer."


E ele respondeu, dizendo:
 
"O prazer é uma canção de liberdade. Mas não é a liberdade.
 
É o desabrochar de vossos desejos, Mas não a sua fruta.
 
É um abismo olhando para um cume. Mas não é nem o abismo nem o cume.
 
É o engaiolado ganhando o espaço, Mas não é o espaço que o envolve.
 
Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade. E de bom grado eu vos ouviria cantá-la de todo vosso coração; porém, não gostaria que perdêsseis vossos corações no canto.
 
Alguns de vossos jovens procuram o prazer como se fosse tudo na vida, e são condenados e repreendidos.
Eu preferiria nem condená-los, nem repreendê-los, mas deixá-los procurar.
 
Pois encontrarão o prazer, mas não só ele: Sete são suas irmãs, e a última dentre elas é mais bela que o prazer.
 
Não ouvistes falar do homem que cavava a terra à procura de raízes e descobriu um tesouro?
 
E alguns de vossos anciões recordam, seus prazeres com remorso, como se fossem erros cometidos num estado de embriaguez.
 
Mas o remorso é o escurecimento da alma e não o seu castigo. Deveriam, antes, recordar seus prazeres com gratidão, como recordariam uma colheita de verão.  Todavia, se acharem conforto no remorso, deixemo-los se confortarem.
 
E há entre vós aqueles que não são jovens para procurar, nem velhos para recordar; E no seu temor de procurar e recordar, desprezam todos os prazeres por medo de afugentar ou ofender o espírito. Porém, na sua renúncia está seu prazer. E, assim, eles também descobrem um tesouro embora cavem com as mãos trêmulas à procura de raízes.
 
Mas dizei-me quem é que pode ofender o espírito? Ofende o rouxinol a quietude da noite, ou o pirilampo as estrelas?
 
E poderá vossa flama ou vossa fumaça sobrecarregar o vento?
 
Credes que o espírito é um poço tranqüilo que podeis perturbar com um bastão?
 
Muitas vezes, ao negardes a vós mesmos um prazer, nada mais fazeis do que armazená-lo nos recessos de vosso Eu. E quem sabe se o que parece omitido hoje não espera pelo amanhã?
 
Mesmo vosso corpo conhece sua herança e seus direitos, e vós não o podereis iludir. E vosso corpo é a harpa de vossa alma; A vós pertence tirar dele música melodiosa ou ruídos dissonantes. !
 
E agora vós perguntais em vosso coração: "Como distinguiremos o que é bom no prazer do que é mau?" Ide, pois, aos vossos campos e pomares e, lá, aprendereis que o prazer da abelha é de sugar o mel da flor, Mas que o prazer da flor é de entregar o mel à abelha.
 
Pois, para a abelha, uma flor é uma fonte de vida. E para a flor, uma abelha é uma mensageira de amor. E para ambas, a abelha e a flor, dar e receber o prazer é uma necessidade e um êxtase.
 
Povo de Orphalese, nos vossos prazeres, imitai as flores e as abelhas."


 
Um poeta disse: "Fala-nos da Beleza."


E ele respondeu:
 
"Onde procurareis a beleza e como a podereis encontrar a menos que ela mesma seja vosso caminho e vosso guia?
 
E como podereis falar a menos que ela mesma teça vossas palavras?
 
Os aflitos e os feridos dizem: "A beleza é amável e suave. Como uma jovem mãe, meio encabulada na sua glória, ela caminha entre nós."
 
Os apaixonados dizem: "Não, a beleza é uma força poderosa e temível. Como a tempestade, ela sacode a terra abaixo e o céu acima."
 
Os cansados e os gastos dizem: "A beleza é um murmúrio suave. Ela fala em nosso espírito. Sua voz cede aos nossos silêncios como uma luz tênue que treme por medo da sombra."
 
Mas os turbulentos dizem: "Nós a ouvimos gritar entre as montanhas, E com seus gritos chegavam o tropel de cavalos, o bater de asas e o rugir de leões."
 
A noite, os guardas da cidade dizem: "A beleza despontará do Oriente, com a aurora."  
 
E, ao meio-dia, os trabalhadores e os transeuntes dizem: "Nós a temos visto inclinada sobre a terra, das janelas do poente."
 
No inverno, os prisioneiros da neve dizem: "Ela virá com a primavera, pulando sobre as colinas."
 
E no calor do verão, os ceifeiros dizem: "Nós a vimos dançar com as folhas do outono, e havia neve no seu cabelo."
 
Todas essas coisas, vós dissestes da beleza. Porém, na verdade, não falastes dela, mas de desejos insatisfeitos.
 
E a beleza não é um desejo, mas um êxtase. Não é uma boca sequiosa, nem uma mão vazia que se estende, Mas, antes, um coração inflamado e uma alma encantada.
 
Ela não é a imagem que desejais ver, nem a canção que desejais ouvir, Mas, antes, a imagem que contemplais com olhos velados e a canção que ouvis com ouvidos tapados.
 
Não é a seiva por baixo da cortiça enrugada, nem uma asa atada a uma garra. Mas, sim, um pomar sempre em flor, e uma multidão de anjos em voo.
 
Povo de Orphalese, a beleza é a vida quando a vida desvela seu rosto sagrado. Mas vós sois a vida, e vós sois o véu. A beleza é a eternidade olhando para si própria num espelho. Mas vós sois a eternidade, e vós sois o espelho."


 
Então, um velho sacerdote disse: "Fala-nos da Religião." E ele disse:


"Tenho eu falado de outra coisa hoje? Não é a religião todas as nossas ações e reflexões? E tudo o que não é ação nem reflexão, mas aquele espanto e aquela surpresa sempre brotando na alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou manejam o tear?
 
Quem pode separar sua fé de suas ações, ou sua crença de seus afazeres?
 
Quem pode espalhar suas horas perante si, dizendo: "Esta é para Deus, e essa é para mim; esta é para minha alma, e essa é para meu corpo?"
 
Todas vossas horas são asas que adejam através do espaço, passando de um Eu ao outro. Aquele que veste sua moralidade como veste seus melhores trajes, melhor seria que andasse desnudo.
 
O vento e o sol não cavarão buracos na sua pele. E aquele que traça sua conduta pela ética, encarcera seu pássaro cantor numa gaiola. A mais livre canção não chega através de barras e arames.
 
E aquele para quem a adoração é uma janela a abrir, mas também a fechar, não visitou ainda o santuário de sua alma, cujas janelas permanecem abertas de aurora a aurora.
 
Vossa vida cotidiana é vosso templo e vossa religião. Todas as vezes que penetrais nela, levai convosco todo o vosso ser. 
 
Levai o arado, a forja, o macete e a lira, Todas as coisas que modelastes por necessidade ou por prazer: Pois nos vossos sonhos, não podeis elevar-vos acima de vossas realizações nem cair abaixo de vossos fracassos.
 
E levai convosco todos os homens: Pois na vossa adoração, não podeis voar acima de suas esperanças nem aviltar-vos abaixo de seu desespero. E se quereis conhecer a Deus, não procureis transformar-vos em decifradores de enigmas.
 
Olhai, antes, à vossa volta e encontrá-Lo-eis a brincar com vossos filhos. E erguei os olhos para o espaço e vê-Lo-eis caminhando nas nuvens, estendendo Seus braços no relâmpago e descendo na chuva. E o vereis sorrindo nas flores e agitando as mãos nas árvores."


 
Então, Almitra falou, dizendo: "Gostaríamos de interrogar-te a respeito da Morte."


E ele disse:
 
"Quereis conhecer o segredo da morte. Mas como poderíeis descobri-lo se não o procurardes no coração da vida?
 
A coruja, cujos olhos, feitos para a noite, são velados ao dia, não pode descortinar o mistério da luz.
 
Se quereis realmente contemplar o espírito da morte, abri amplamente as portas de vosso coração ao corpo da vida. Pois a vida e a morte são uma e a mesma coisa, como o rio e o mar são uma e a mesma coisa.
 
Na profundidade de vossas esperanças e aspirações dorme vosso silencioso conhecimento do além; E como sementes sonhando sob a neve. Assim vosso coração sonha com a primavera. Confiai nos sonhos, pois neles se ocultam as portas da eternidade.
 
Vosso temor da morte é semelhante ao temor do camponês quando se encontra diante do rei, e este estende-lhe sua mão em sinal de consideração.  O camponês não se regozija, apesar do seu temor, de receber as insígnias do rei?  Contudo, não está ele mais atento ao seu temor que à distinção recebida? Pois, que é morrer senão expor-se, desnudo, aos ventos e dissolver-se no sol?
 
E que é cessar de respirar senão libertar o hálito de suas marés agitadas, a fim de que se levante e se expanda e procure a Deus livremente?
 
É somente quando beberdes do rio do silêncio que podereis realmente cantar.
 
É somente quando atingirdes o cume da montanha que começareis a subir.
 
É quando a terra reivindicar vossos membros que podereis verdadeiramente dançar."


Khalil Gibran, em  "O Profeta"

Fonte: ygaensinamentos

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