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quarta-feira, 25 de março de 2020

DEIXA QUE O OUTRO SEJA O QUE É

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Fonte abundantíssima de infelicidade brota da mania que muitas pessoas têm de querer “converter” outros – não para Deus, mas para seu próprio ego, Isto acontece sobretudo entre casados. A mulher quer obrigar o marido a pensar como ela – e ele, por seu turno, faz a mesma tentativa. E assim os dois andam num eterno círculo vicioso, que se chama discórdia, infelicidade.
 
É que cada um de nós vive na ilusão tradicional, inspirada por nosso inveterado egoísmo, de que a nossa opinião é a mais perfeita, talvez a única verdadeira e capaz de salvar a humanidade; se todos os outros pensassem e agissem como nós, a humanidade seria definitivamente feliz... E por isto tentamos impor e impingir as nossas ideias e caprichos aos outros, sobretudo às pessoas que conosco vivem sob o mesmo teto.
 
Uma das nossas revistas ilustradas pediu a seus leitores que definissem o sentido de certas palavras da gíria popular, entre elas o termo “boboca”. Uma leitora definiu esta palavra do modo seguinte: “Boboca é toda a pessoa que não pensa como eu.” É esta a opinião de todo o egoísta incorrigível: quem não pensa como eu é boboca.
 
Mulher! deixa teu marido tão selvagem como o encontraste da primeira vez! não procures domesticá-lo! não tentes amansá-lo, modificá-lo, reduzi-lo a um fantoche que obedeça automaticamente ao impulso dos cordéis dos teus caprichos femininos e das tuas predileções pessoais! O homem é selvagem por natureza, e selvagem ficará para sempre... Também, que coisa monótona seria se teu marido fosse um boneco de engonço, uma dócil marionete que sempre dissesse “sim” quando tu dizes “sim”, e dissesse “não” quando tu dizes “não”?... Se tal coisa conseguisses do teu companheiro de vida, estou certo de que amanhã terias saudades dos tempos felizes, multiformes e multicores, em que ele era ainda “ele mesmo”, aquele “ele” autêntico, não falsificado, não domesticado, fascinantemente selvagem, e não insipidamente monotonizado como o fizeste...
 
Homem! por que queres reduzir a tua Eva a um punhado de argila amorfa a ser manipulada por ti segundo os teus gostos e caprichos masculinos? Não vês que é muito mais interessante que ela continue a ser o que é, sempre foi e sempre será? Quando a encontraste, moça independente e original, naquele baile, naquele piquenique, naquela viagem – lembras-te? – ela era uma florzinha natural que florescia feliz à beira do caminho, um tanto empoeirada, talvez, mas autêntica e genuinamente “ela mesma”. Deixa que ela, sob o seu teto, continue tão original e única como a encontraste, na alvorada primaveril do teu amor. Não faças da tua poética florzinha natural uma prosaica flor artificial de papel! Embora essa flor de papel tivesse exatamente a forma e a cor que lhe queres impingir, ela deixaria de ser aquela que encontraste naquele dia feliz; seria obra tua, feita à tua imagem e semelhança, mas não já “ela mesma”. É melhor a mais humilde florzinha natural e viva do que a mais deslumbrante flor artificial de papel inerte.
 
Mas, exclamará o leitor, a leitora, se ele continuar “selvagem” como foi, se ela continuar “original” como naquele tempo – poderá haver paz e harmonia em nosso lar? como poderão concordar entre si dois elementos tão heterogêneos, como o autor parece estar advogando?
 
É precisamente aqui que está o grande erro!
 
Harmonia não é caos – mas também não é monotonia. Harmonia supõe diversidade de gênios e gostos. Essa diversidade tem de continuar a existir. Ninguém deve deixar de ser o que é. Extinguir o modo individual e característico de pensar e sentir dele ou dela, seria o mesmo que decretar a mais insípida monotonia, criar um cliché ou chavão, que ninguém suportaria por muito tempo.
 
Entretanto, manter essa diversidade não quer dizer viver em conflitos e discórdias. Não aceitar as opiniões da outra parte, discordar sempre, contradizer em tudo, rejeitar qualquer sugestão, seria reduzir a sociedade conjugal a um caos e um inferno.
 
Todo o segredo da harmonia – equidistante da monotonia e do caos – está na integração, em saber adaptar o seu próprio caráter e gênio ao caráter e gênio do outro, fazer de si um complemento do outro. Integrar não quer dizer identificar, como não quer dizer destruir; é completar.
 
Há no organismo humano enorme variedade de células, servindo cada grupo a uma função peculiar. O grupo A é diferente do grupo B, e este diferente do grupo C. Se A fosse idêntico a B, e B a C, não seria possível o funcionamento orgânico do corpo. Se A guerreasse a B, e B a C, não seria possível a vida orgânica. Mas como o segredo do organismo não está na identificação dos elementos vários, nem na sua destruição ou conflito mútuo, mas sim numa completa integração de cada grupo no Todo, e na colaboração dos diversos grupos entre si, resulta esse maravilhoso equilíbrio rítmico que é a vida e o bem-estar do organismo.
 
Toda a natureza se baseia no princípio da bipolaridade complementar: nada é igual e nada é contrário – tudo é complementar. O polo positivo da eletricidade não é o contrário do negativo, mas lhe é complementar. Se um fosse o contrário, os polos se destruiriam reciprocamente, e não teríamos luz, calor e força, que são a complementaridade dos polos. No átomo, o polo positivo próton não é contrário ao polo negativo eléctron, mas é complementar.
 
Se o masculino fosse o contrário do feminino, teríamos total destruição; se fossem idênticos, não teríamos vida em série, mas estagnação e nulidade.
 
Imagine-se que todas as flores da natureza tivessem a mesma forma e cor! que todas fossem rosas, ou lírios, ou cravos! que insuportável monotonia seria essa!
 
Unidade na variedade, e variedade com unidade – é este o característico da natureza, é este o segredo da harmonia, beleza e felicidade.
 
Deixa, pois, mulher, de querer converter teu marido para os teus gostos pessoais! Acrescenta os gostos dele aos teus! enriquece-te com o que ele tem de bom e positivo, e verás que a tua vida fica mais bela e abundante do que se eliminasses tudo o que é dele e só ficasses com o que é teu.
 
Desiste, ó homem, de querer uniformizar tua companheira com tuas opiniões! Permite-lhe que seja o que é e deve ser, e acrescenta às tuas as boas qualidades dela!
 
Quanto aos aspectos negativos de cada um, os defeitos e deficiências, convém recordar aquilo que o grande Mestre disse do “argueiro no olho do próximo e a trave no olho próprio”. Neste setor, como já lembramos, há uma técnica maravilhosa que nunca falha, e consiste no seguinte: Atribui a teu próximo as virtudes que descobres em ti – e atribui a ti as faltas que descobres no próximo. Pode ser que esta técnica falhe de vez em quando; mas o fato é que pelo menos em 90% dos casos dá certo.
 
O egoísmo é duro, inflexível, quebradiço como vidro.
 
O altruísmo, o amor, é resistente, mas flexível e adaptável como mola de aço.
 
Deus não creou mercadorias em série. Todas as obras de Deus são originais, inéditas. Não há cópias e repetições na natureza; cada planta, cada inseto, cada animal, cada ave, até cada flor e cada folha, é uma obra de arte original, que nunca será repetida da mesma forma.
 
Sobretudo, cada ser humano é único no seu modo de ser. Por isto, ninguém deve exigir de A que seja como B. Deus não creou gente. Deus creou indivíduos, personalidades, diferenciadas umas das outras. Não vamos, pois, nivelar o que Deus diferenciou. Uma sociedade que constasse de gente amorfa, e não de indivíduos multiformes e multicores, seria monótona e intolerável. Mas cada um desses indivíduos, em vez de ser individualista e separatista, deve cooperar com os outros indivíduos, a fim de formar o maravilhoso mosaico ou esplêndido organismo da vida abundante.



Entretanto, tudo quanto aqui vai exposto não passa duma ligeira indigitação, teórica e vaga; se o leitor quer saber mesmo como é na realidade, terá de praticar durante algum tempo o que acabamos de dizer; porque, em última análise, saber não quer dizer ter lido ou ouvido; saber é viver, experimentar, saborear.
 
Quem vive aquilo que acabamos de expor saberá que é verdade, e nunca se  arrependerá dessa vivência.
 
Onde há boa vontade aí há um caminho aberto.
 
A vontade sincera e sadia de querer servir, em vez da mania mórbida de querer ser servido, é a chave da compreensão e da felicidade.
 
As almas mesquinhas querem ser servidas – as almas grandes querem servir...

Huberto Rohden - Trecho do Caminho da Felicidade
Curso de Filosofia da Vida
 

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