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domingo, 9 de abril de 2017

É DIFÍCIL E DOLOROSO
CONHECER-SE COMO SE É



Talvez exista na mente de algumas pessoas a convicção de haver eu estado tratando especialmente de metafísica e de filosofia. Não me preocupo com metafísica. Todos os problemas da vida virão a ser respondidos quando houverdes realizado a Verdade em sua completude dentro de vós mesmos. Não encareis o que digo do ponto de vista da filosofia ou da metafísica, porém, sim, antes do ponto de vista da conduta de todos os dias, a vida, a alegria e a aflição.
 
Todos vos preocupais com o entendimento da tristeza que vos empolga. Por meio da busca da compreensão, descobrireis um modo de vida que vos liberte desse conflito que cria em vós tristeza e ilusão. A causa fundamental da tristeza é a ação — a ação é pensamento e emoção — que brota da consciência do eu, do ego. Se as obras, pensamentos e sentimentos nascerem do egoísmo, do ego, então, por grandes, por generosas ou nobres que sejam, ligam sempre e, nessa limitação, nesse cativeiro, haverá tristeza. A ação torna-se cativeiro quando um indivíduo é propelido a ela pela cobiça, pelos desejos egoístas, pelo ódio, pelo desprazer, pela crueldade, pela inveja, pelas qualidades de toda a espécie. É essencial compreender isto. Vosso incessante esforço para vos ajustardes entre os opostos é a causa do conflito, porém a libertação é a liberdade dos opostos.

A luta e a aflição vêm à existência quando o ego, pela emoção e pelo pensamento, cria a divisão dos opostos. A completude existe em todos, posto que esteja colida pela vossa eu-consciência, por vós mesmos criada. Na libertação da eu-consciência está a realização da completude. Enquanto a eu-consciência, isto é, o ego, existir, tem que haver esforço e por conseguinte, tristeza.

Quando estiverdes libertos dos opostos, dos extremos, a harmonia virá à existência. Isto é consumação da sabedoria; porém não podereis realizar isto se houver um único pensamento do “eu”, do “meu” e do “teu”, isto é, do ego que é separatividade. Na Realidade, na Verdade, na Vida, não há nem separação nem unidade.

Quando a Verdade é completa todos os opostos cessam de existir. A completude não tem aspectos, nem divisões, nem opostos. É essa completude que eu denomino perfeição e que existe a todo  instante em todas as coisas, em todo  ser humano; porém, em virtude de sua eu-consciência o homem cria divisões entre a Realidade e si próprio. O ego pertence ao tempo, está sempre buscando orientação, seja pelos opostos, adquirindo qualidade, criando separatividade, conflitos, esforços.

Haveis de perguntar: “Que acontecerá quando minha eu-consciência ficar liberta? O que é, então, que sente, o que é que, então é consciente?” Quando estiverdes livres da eu-consciência, isto é, quando tiverdes passado pela chama da eu-consciência, essa eu-consciência cederá lugar à realização da Verdade, na qual não mais existe perceptor e percebido, ator e ação, na qual não há dualidade. Entendereis isto quando estiverdes libertos da eu-consciência. Portanto, vosso imediato esforço deve orientar-se no sentido desta libertação.

Enquanto o homem estiver preso na eu-consciência, na ilusão da separação, haverá transitoriedade, ele será escravo do tempo e, portanto, da tristeza. Por consequência, deveis vos tornar conscientes de vossa tristeza, isto é, apercebidos de sua causa; não a tristeza que provém da imaginação, porém a tristeza do conflito da ação na vida diária. Quando estiverdes plenamente conscientes dessa tristeza, estareis começando a vos libertar a vós próprios, estareis começando a ficar sãos e normais.

Pelo fato de serdes eu-conscientes, desejais os opostos. Se fordes ricos, temereis perder vosso dinheiro. Pensais encontrar na riqueza a vossa felicidade, o conforto, a consolação e, por isso, vos apegais aos bens terrenos. Se fordes pobres, quereis ser ricos, pois a pobreza priva o homem de muitas coisas — da educação, do conforto físico, dos prazeres e de tudo quanto a riqueza pode dar. Os opostos estão sempre em vossa mente e, portanto, ficais cada vez mais aprisionados na eu-consciência. Esta eu-consciência cria continuamente distinções, divisões de classe, de posição e de poder. Ficais presos pela ilusão e por essa ilusão buscais os opostos e, assim, criais ao redor de vós um mundo caótico. O ponto não é ser rico ou ser pobre, porém estar completamente desprendido tanto da pobreza como da riqueza. O estar plenamente desprendido dos opostos produz a verdadeira harmonia: então não mais evitareis a pobreza nem tampouco evitareis ou solicitareis a riqueza.

Há sempre no homem a completude. Esta completude ultrapassa o tempo, a duração; dela nos aproximamos por uma direção seja ela qual for. Pelo fato de o homem estar preso na ilusão dos opostos, há o positivo e o negativo. Ele imagina que por não ser completo é que não pode realizar a completude a não ser por meio da experiência dos opostos. A paixão existirá enquanto o homem e a mulher estiverem presos na tristeza da incompletude. Tenho visto gente ao meu redor aprisionadas pela paixão, nos opostos. Eu desejei realizar a completude, isto é, quis libertar-me dos opostos, quis libertar minha eu-consciência. Verifiquei que em mim existiam tanto o positivo como o negativo; que, porém, enquanto dependesse de um oposto para minha felicidade, não poderia haver harmonia e a realização da completude. Porque se casam as pessoas? Buscam-se pelo matrimônio, vencer o isolamento, vencer a incompletude. Uma força externa os propele à completude, isto é, a libertarem-se da eu-consciência. Essa força os propele ao ajustamento, à harmonia.

Por favor, não penseis do que eu digo, que entendo ser o casamento caminho fácil, ou um caminho que em absoluto não conduz à completude. Não é preciso, porém, passar pela experiência do casamento para realizar a completude. Pode-se realiza-la sem esse incidente, mas tal, exige grande esforço e concentração, grande determinação e coragem. Não digo que seja isto coisa superior ao casamento, pois que a completude pode ser realizada em todas e quaisquer circunstâncias desde que no homem exista intensidade de desejo por essa completude, que é a libertação da eu-consciência. O essencial para a realização da Verdade não são as circunstâncias externas, os sistemas, os caminhos, os métodos, porém o intenso desejo o qual, por si mesmo, cria a verdadeira inteligência para a compreensão.

Tomais o gosto e o desgosto como exemplo. O ser humano é dominado pelos seus gostos e desgostos. Enquanto existir eu-consciência tem que haver estes opostos. Quando a eu-consciência se libertar, então há o amor que é livre de limitações, de peculiaridades, de particularidades. Isto não implica a vacuidade da indiferença, pois que o amor, sendo completo em si mesmo, não admite distinção de gosto e desgosto. Tomai também o poder. O homem, pelo fato de estar limitado pela eu-consciência fica preso na ilusão do poder e da humildade. O homem, em sua fraqueza, busca a força e debate-se na ilusão desses opostos. Nem pela humildade e fraqueza, nem tampouco pelo poder realizará ele a completude.

Repito, analisai o medo e o conforto. O temor exige o conforto mental, emocional e físico, e exige a salvação por intermédio de outrem, isto é, o auxílio exterior.

Enquanto o homem estiver colhido pela rede da sua eu-consciência, será um joguete de opostos e, portanto, sofrerá. O sofrimento é devido à natureza transitória de todos os opostos, de sua incompletude, de sua incerteza. Enquanto existir essa distinção causada pelos opostos, existirá a escravidão do tempo e, portanto, a incompletude. Para realizardes esta completude que existe em tudo, tendes que possuir essa quietação interna, essa contemplação sem esforço, que a si própria está se renovando. Não é isto uma condição estagnante. A primeira coisa essencial para a compreensão desta Realidade é a de vos tornardes normais. A maioria dentre vós é composta de anormais, de insanos. O que eu chamo ser normal é conhecer a si próprio mediante a eu-consciência, é ser destemido, estar liberto de enganos, de anseios, de cobiças; o conhecer-se como se é, não como se pretende ser, não como se espera ser ou como já se foi no passado. Tendes que, por completo, vos libertar do passado e do futuro para vos tornardes normais.

Precisais ser normais, não vos é permitido ter qualquer particular idiossincrasia ou alimentar falsas esperanças. Para mim, tais esperanças constituem um embaraço pois que vos conduzem a evitar o presente. Para mim, o presente é o conjunto do tempo. É agora que projetais vossa sombra; é agora que sofreis; é portanto agora, que podeis vos libertar da tristeza. Por consequência, deveis vos tornar conscientes do presente, o que corresponde a vos tornardes normais e não incidir em indulgências no que respeita a certas esperanças no futuro, a sonhos agradáveis, filhos da imaginação. Isto, porém, exige grande determinação e o desejo de ser completo no presente.

Assim, ao vos tornardes cônscios daquilo que sois no presente é o primeiro refúgio, a primeira pedra do alicerce dessa permanência que é a realização da completude. O vos conhecerdes a vós próprios com todas as vossas fraquezas, com todas as vossas dificuldades, com todas as vossas paixões, com todas as vossas invejas, com todas as vossas crueldades, eis o primeiro passo. Tristezas existirão enquanto houver eu-consciência, pois somente na realização da completude reside a felicidade. Pelo fato de desejardes compreender essa completude tornar-vos-eis normais e a vós próprios disciplinareis com a verdadeira disciplina.


 
Krishnamurti
 
 
Fonte: pensarcompulsivo 
 

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