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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

COISAS VIVAS



Vários anos atrás, um acontecimento comum me ofereceu um belo presente de sabedoria. Certa noite, me dirigi à cozinha para preparar minha janta. Abri a geladeira, retirei os ingredientes. Preparei pratos e panelas, e em determinado ponto coloquei casualmente um dente de alho - que pretendia amassar para usar na refeição - numa pequena tábua de madeira sobre a bancada ao lado da pia.

Quando observei melhor o dente de alho, vi que uma ponta de raiz saía de uma das extremidades. Naquele instante percebi o alho com plena atenção, e vi que a vida pulsava naquele pequeno pedaço de existência. O pequeno bulbilho de alho lutava para viver, estava vivo! Em um jorro de aprendizagem fundamental, compreendi que nenhuma forma de vida deve ser desprezada quando comemos.

Os vegetais que consumimos estão plenos de vida, e se não fosse assim teríamos em nossos pratos apenas substrato vegetal morto, em decomposição, intragável. Para que possamos ingeri-las, as plantas precisam estar vivas e ainda mais pulsantes de energia vital do que os pedaços de carne de animais mortos que muitos também consomem em suas refeições.

Percebi que, frequentemente, usamos os termos "frescos" ou "viçosos" para falar dos vegetais. Mas isso é apenas uma outra maneira de se dizer "vivos". Não pretendo, em absoluto, fazer qualquer crítica à proposta vegetariana. Nem espero contrapor o conceito de existência vegetal e seus níveis de percepção aos diversos exemplos de sofrimento animal na indústria de alimentos. Apenas, em um momento comum durante uma noite qualquer, minha mente experimentou com intensa lucidez a importância de reconhecer com profunda consciência e agradecimento todas as formas de vida que usamos para nosso sustento.

Invariavelmente, seja qual for nosso modo de alimentação, devemos compreender que precisamos nos alimentar da vida. Assim é o Samsara, a roda da existência: em meio ao fluxo desenfreado de acontecimentos interconexos, há também a realidade da transformação da vida em alimento para a continuidade de outras vidas.

Portanto, penso que é preciso saber agradecer a parcela da vida que é sacrificada para nos permitir continuar a viver. Não importa qual seria o modo de percepção de uma planta, ela também está viva e seu valor como existência pura é igual a de qualquer outro ser. E neste contexto, a gratidão é simplesmente o meio de reconhecer tal valor, e também o meio hábil de reconhecer que a transitoriedade faz parte do eterno fluxo de nascimento e morte no mundo. Assim é o ensinamento de Buddha: toda é vida é valiosa, mas toda vida é também transitória e será um dia parte de outras vidas de um modo ou de outro.

A questão, enfim, é tratar TODOS os seres que nos oferecem sua vitalidade com respeito e compaixão. Evitar sempre o sofrimento de todos os seres. Evitar consumir alimentos feitos a partir do sofrimento extremo, crueldade e insensibilidade.

A cada refeição, recite seu agradecimento aos alimentos que serão consumidos para que você possa subsistir. Agradeça aos grãos de arroz, ao alho, à batata, à cenoura. Todos, sejam sementes ou bulbos, folhas ou raízes, compartilham em si a pulsação da vida pronta para explodir em continuidade.

Estas criaturas não irão ouvir suas palavras, e sequer seus níveis de percepção podem atingir nossa realidade. Mas todos os seres possuem o dom da sensibilidade em algum nível, e estão vivendo a SUA própria versão da realidade relativa. A ciência têm demonstrado em muitos experimentos que as plantas respondem a vibrações harmônicas. Assim até mesmo os vegetais, de algum modo, serão beneficiados pelo seu respeito e agradecimento.

Sua refeição não apenas será rica em vitaminas e valor alimentício, ela será também uma refeição energizada com o valor saudável de uma atitude mental compassiva, amorosa, tranquila. E você estará praticando o ESTAR ALI, atento ao que faz e ao que consome.

Pequenos gestos são grandes meios de pavimentar o caminho da plena consciência. Dê mais valor às suas intenções, e pare de ser indiferente aos detalhes sutis da existência. Abra sua mente, e seu coração.

Finalmente, aquele acontecimento comum me ofereceu uma última dádiva de sabedoria: nunca subestime as ações que você realiza. Pois até mesmo o simples ato de amassar um dente de alho pode resultar em uma maravilhosa aprendizagem, tão profunda quanto qualquer ensinamento registrado em um texto sagrado, ou dito por um grande mestre...

O importante é saber ouvir a voz da existência de onde e como vier.

 
Monge Kōmyō
Fonte:http://salvaroqueepossivel.blogspot.com.br

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