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sábado, 19 de maio de 2018

O TRABALHO COM O 
APEGO E O DESEJO

Última Parte
Perguntas e Respostas


PERGUNTA: Não estou certo de que entendo o que o Sr. quer dizer com “liberar uma emoção em sua própria base”.

RESPOSTA: Nosso hábito, quando uma emoção aparece, é ficarmos envolvidos em analisar e reagir à sua causa aparente: o objeto externo. Se, em vez disso, nós simplesmente – sem apego ou aversão, ódio ou envolvimento – descascarmos e abrirmos a emoção, iremos revelar e vivificar sua natureza de sabedoria. Quando estamos nos sentindo inchados, com o rei na barriga, em vez de nos entregarmos ao nosso orgulho ou afastá-lo, relaxamos a mente e revelamos a natureza intrínseca do orgulho, que é a sabedoria da equanimidade.

Ao trabalhar com as emoções, podemos empregar diferentes métodos. Quando nossa mente está mergulhada na dualidade, na percepção sujeito-objeto, podemos cortar o ferro com o ferro: aplicamos um pensamento positivo como antídoto de um negativo, o apego à felicidade dos outros como antídoto do apego à nossa própria felicidade. Se formos capazes de relaxar o hábito da mente à dualidade, poderemos experimentar a verdadeira essência ou “base” de uma emoção, e assim “liberá-la em sua própria base”. Assim, seu princípio de sabedoria é revelado: o orgulho como a sabedoria da equanimidade; a inveja como a sabedoria que tudo realiza; o apego e o desejo como a sabedoria discriminativa; a raiva e aversão como a sabedoria semelhante ao espelho; e a ignorância como a sabedoria do darmadatu, a sabedoria da verdadeira natureza da realidade.

PERGUNTA: O Sr. poderia falar mais sobre como a contemplação da impermanência reduz o apego?

RESPOSTA: Imagine um adulto e uma criança que constroem um castelo de areia na praia. O adulto nunca chega a considerar o castelo como permanente ou real, e não se apega a ele. Quando uma onda vem e leva embora o castelo, ou aparecem outras crianças e o derrubam com pontapés, o adulto não sofre. Mas a criança passou a pensar nele como uma casa de verdade que vai durar para sempre, e, portanto, sofre quando o perde.

Como a criança, simulamos por tanto tempo que a nossa experiência é estável e confiável que o nosso apego a ela é muito grande, e sofremos quando ela muda. Se mantivermos consciência da impermanência, então nunca seremos completamente enganados pelos fenômenos do samsara.

Se você contemplar o fato de que não lhe resta um período muito longo de vida, isso irá ajudá-lo. Você pensará, “No tempo que me sobra, por que seguir essa raiva ou apego que apenas produzirão mais confusão, fantasias e visões equivocadas?

Se eu levar o que é impermanente tão a sério, tentando agarrar isto ou afastar aquilo de mim, vou estar apenas imaginando ser sólido o que não é. Vou estar apenas complicando e perpetuando ainda mais as ilusões e enganos do samsara. Não vou fazer isto! Vou usar este apego ou esta aversão, este orgulho ou esta inveja como prática”. Prática espiritual não quer dizer apenas ficar sentado em uma almofada de meditação. Quando você está junto da experiência do desejo ou da raiva, bem onde a mente está ativa, é aí que você pratica, a cada momento, a cada passo da sua vida.

PERGUNTA: Ao contemplar a impermanência, percebo que meu apego diminui em certa medida, mas pergunto: até onde devo ir ao me desapegar das coisas?

RESPOSTA: Você precisa saber discriminar com o que lida em primeiro lugar. Ao final, talvez você possa se desapegar de tudo, mas comece abandonando os venenos da mente – por exemplo, a raiva. Em vez de pensar, “Por que lavar estes pratos, eles são impermanentes?” solte-se de sua raiva por ter que os lavar. Compreenda também que tudo o que surge na mente e desencadeia sua raiva é impermanente. A própria raiva é impermanente. As coisas que alguém diz a você e que o afetam de modo negativo, também são impermanentes. Perceba que são apenas palavras, sons, não algo duradouro.

O próximo passo é abandonar o apego a que a coisas sejam do seu jeito. Quando você compreende a impermanência, não importa tanto que as coisas saiam como você pensa que deveriam. Se saem, tudo bem. Se não saem, isto também está bem.

Quando você pratica assim, a mente lentamente vai adquirindo maior equilíbrio. Ela não vira para o direito ou para o avesso, conforme você obtenha ou não aquilo que quer.

PERGUNTA: Há algo de errado em ficarmos alegres ou tristes, em sentirmos nossas emoções?

RESPOSTA: Se, ao vivermos a felicidade, nós nos recordamos de que ela é impermanente, que em um dado momento irá desaparecer, isso nos ajudará a prezá-la e a desfrutar dela enquanto durar.

Ao mesmo tempo, não ficaremos tão apegados a ela e nem fixados nela – não experimentaremos tanta dor quando ela se for.

De igual modo, quando vivemos dor, mágoa ou perda, deveríamos nos lembrar de que essas coisas também são impermanentes, o que alivia nosso sofrimento. Portanto, o que nos conserva equilibrados é a consciência constante da impermanência.

PERGUNTA: O “eu” continua presente quando ampliamos o foco do nosso apego para incluir as necessidades dos outros?

RESPOSTA: Se você estiver preso por cordas amarradas com muito nós, para se soltar terá que desfazer os nós um a um, na ordem inversa em que foram originalmente feitos. Em primeiro lugar, você desmanchará o último nó, depois o penúltimo, e assim por diante, até desfazer o primeiro, aquele que está mais próximo de você.

Nós estamos atados por muito nós, inclusive por muito tipos de apego. Em termos ideais, não deveríamos nos prender a coisa alguma, mas, como não é esse o caso, usamos o apego para cortar o apego. Começamos desfazendo o último nó: substituindo o apego às nossas próprias necessidades e desejos por apego à felicidade dos outros.

Precisamos compreender que o apego egoísta, mais cedo ou mais tarde, criará problemas. Se você estiver apegado a suas próprias necessidades e desejos, se você gosta de estar feliz e não gosta de sofrer, então, quando alguma coisa menor sai errada, parece gigantesca. Você se debruça sobre ela da manhã à noite, exacerbando o problema. Uma trinca numa xícara começa a parecer o Grand Canyon quando examinada sob o microscópio de sua constante atenção.

Este foco auto-centrado é, em si, um tipo de meditação. Meditação significa trazer algo de volta à mente, vez após vez. Se repetimos pensamentos virtuosos e repousamos na natureza da mente, isso pode levar à iluminação. Mas, quando a meditação está voltada para a importância da nossa pessoa, apenas produz sofrimento sem fim. O fato de nos concentrarmos em nossos problemas pode mesmo resultar em suicídio, pois podemos ficar tão tomados por nosso sofrimento que a vida parece insuportável e sem propósito. O suicídio é a pior das soluções porque o apego à morte e a aversão à vida humana assim extremados, podem fechar a porta para um renascimento humano no futuro.

Portanto, precisamos começar reduzindo nosso foco auto-centrado e nossos pensamentos de auto-importância. Para isso, nos recordamos de que não somos os únicos que querem ser felizes – todos querem. Embora os outros busquem a felicidade, pode ser que não saibam como fazer para consegui-la, enquanto que nós, se temos alguma compreensão do caminho espiritual, talvez possamos ajudá-los e apoiá-los em seus esforços.

Nós nos lembramos de que, certamente, encontraremos problemas. Somos humanos. Todavia, embora surjam dificuldades, não devemos dar força a elas. Todos têm problemas, muitos deles piores do que os nossos. À medida que contemplamos isso, nossa visão se expande para abarcar o sofrimento dos outros. À medida que a compaixão se aprofunda, o implacável foco auto-centrado se reduz; aumenta nossa intenção de ajudar os outros e a capacidade de fazer isso.

Se estivermos com o corpo doente, é recomendável ficarmos apegados ao remédio que irá nos curar. Porém, uma vez que tenhamos sarado, esse apego precisa ser cortado. Caso contrário, o próprio remédio que nos curou poderá nos deixar doente novamente. Agora, para cortarmos o apego à nossa pessoa, usamos como remédio a atitude de nos apegarmos a criar benefícios para os outros. Empregamos o apego para transformar o apego. Ao final, se tivermos que alcançar a iluminação, o apego em si precisa ser cortado.

PERGUNTA: Como podemos mudar nosso hábito de nos fixarmos nas experiências passadas?

RESPOSTA: Nenhuma experiência dura muito. Mas a sustentamos com nossos conceitos e emoções; nos agarramos a ela, revolvendo-a em nossa mente. Quando isso acontece, é preciso mudar a direção de nossos pensamentos. Se percebermos que nos fixamos no fato de alguém nos ter feito mal, voltamos a mente para a compaixão, pensando: “Ele pode ter me ferido, mas, perdido nas projeções da mente confusa e iludida, na verdade, em vez de se beneficiar, ele se prejudicou, contrariando seu próprio desejo de felicidade”.

Também voltamos a mente para a impermanência. Embora alguém tenha nos elogiado ou nos culpado por alguma coisa, suas palavras foram apenas como um eco. Como tudo mais, palavras vêm e vão. Reconhecendo sua impermanência, damos menos solidez a elas e as esquecemos mais facilmente.

De maneira, mudamos o hábito de nos fixarmos nas experiências passadas. Não é suficiente direcionar a mente apenas uma ou duas vezes. Precisamos fazer isso centenas de vezes. Seja qual for o poder dado aos pensamentos do passado, precisamos redobrar o poder do antídoto contra eles.

Texto extraído do Livro “Portões da Prática Budista”, por S.Em. Chagdud Tulku Rinpoche, páginas 19-30.
 
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