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sábado, 19 de maio de 2018

O TRABALHO COM O 
APEGO E O DESEJO
 Segunda Parte

Aqueles que são jovens pensam que sua vida será longa e os velhos pensam que a vida terminará logo. Mas não podemos pressupor essas coisas. Nossa vida vem com uma data de expiração embutida. Há muitas pessoas fortes e saudáveis que morrem jovens, enquanto muitos que são velhos, doentes e debilitados continuam vivendo dia após dia. Sem saber quando iremos morrer, precisamos cultivar apreciação e aceitação das coisas que temos, enquanto as temos, em vez de ficarmos procurando defeitos em nossas experiências e buscarmos, incessantemente, preencher nossos desejos.

Se começamos a nos preocupar se o nosso nariz é grande ou pequeno demais, deveríamos pensar, “E se eu não tivesse cabeça – isso sim seria um problema!” Enquanto tivermos vida, deveríamos nos regozijar. Se nem tudo sai exatamente como gostaríamos, podemos aceitar isso. Se contemplarmos a impermanência em profundidade, paciência e compaixão irão aparecer. Iremos nos apegar menos à verdade aparente das nossas experiências, e nossa mente se tornará mais flexível. Ao nos darmos conta de que um dia este corpo vai ser enterrado ou cremado, vamos nos regozijar com cada momento que tivermos, em vez de fazermos infelizes a nós mesmos ou aos outros.

Agora vivemos contaminados pela infecção do “eu-meu”, uma condição causada pela ignorância. Nossa atitude auto-centrada e nossos pensamentos de auto-importância tornaram-se hábitos muito fortes. A fim de mudá-los, precisamos alterar nosso foco. Em vez de ficarmos preocupados com “eu” o tempo todo, devemos redirecionar a atenção para “você” ou “ele” ou “os outros”. Com a redução da auto-importância, diminui também o apego que resulta dela. Quando pomos o foco da nossa atenção fora de nós mesmos, isso nos leva, ao final, a compreender a igualdade que há entre nós e todos os demais seres. Todos querem ter felicidade, ninguém quer sofrer. O apego à nossa própria felicidade amplia-se para se tornar apego à felicidade de todos.

Até agora nossos desejos tenderam a ser muito superficiais, egoístas e imediatistas. Se tivermos que querer algo, então que seja nada menos do que a completa iluminação de todos os seres. Eis aí algo digno de ser desejado. Recordarmo-nos continuamente do que verdadeiramente vale a pena querer é um importante elemento da prática espiritual.

Desejo e apego não mudam da noite para o dia. Porém, o desejo se torna menos comum à medida que redirecionamos nossos anseios mundanos para a aspiração de fazer tudo o que está a nosso alcance para ajudar todos os seres a encontrar felicidade permanente. Não temos que abandonar os objetos habituais dos nossos desejos – relacionamentos, riqueza, fama -, mas, na medida em que contemplamos sua impermanência, ficamos menos apegados a eles. Se temos a atitude de nos regozijarmos com nossa sorte quando eles aparecem, e ao mesmo tempo, reconhecemos que não irão durar, começamos a desenvolver qualidades espirituais.

Com o tempo, na proporção em que nossa prática de meditação amadurece, podemos tentar uma abordagem diferente da contemplação, diferente de usar o pensamento para transformar o pensamento: revelar a natureza mais profunda ou o princípio de sabedoria das emoções no ato delas surgirem.

Se você estiver no meio de um ataque de desejo – alguma coisa prendeu sua mente e você precisa tê-la -, não conseguirá se livrar do desejo tentando reprimi-lo. Em vez disso, você pode olhar através do desejo, começando a examinar o que ele é. Quando o desejo aparece na mente, pergunte-se, “De onde ele vem? Onde ele permanece? Será que ele pode ser descrito? Será que ele tem cor, forma ou contorno? Quando desaparece, para onde ele vai?”.

Essa situação é interessante. Você pode dizer que o desejo existe, mas se buscar pela experiência, não consegue pôr a mão nela. Por outro lado, se disser que ele não existe, estará negando o fato óbvio de que você está sentindo desejo. Você não pode dizer que valem “ambas” as coisas ou “nenhuma” delas, que ele tanto existe quanto não existe, ou que ele nem existe nem não existe. Este é o significado da verdadeira natureza do desejo, além dos extremos da mente conceitual.

É nossa incapacidade de compreender a natureza essencial de uma emoção quando ela surge, que nos mete em dificuldades. Uma vez que consigamos fazer isso, a emoção tende a se dissolver. Então, não a estaremos reprimindo nem incentivando. Estaremos simplesmente olhando com clareza para o que ocorre. Se pusermos de lado, por um tempo, um copo com água turva, ela vai se assentar por si só e ficar transparente. Em vez de julgarmos a experiência do desejo, olhamos diretamente para sua natureza, o que se chama “liberá-lo em sua própria base”.

Cada uma das emoções negativas ou venenos mentais possui uma pureza intrínseca que não reconhecemos por estarmos tão acostumados à sua aparência de emoção. A verdadeira natureza dos cinco venenos – ignorância, apego, aversão, inveja e orgulho – são as cinco sabedorias. Da mesma forma que um veneno pode ser ingerido como remédio para se obter cura, cada veneno da mente, se trabalhado adequadamente, pode ser remetido à sua natureza de sabedoria e, assim, incrementar nossa prática espiritual.

Se, em meio à intensidade do desejo, você simplesmente relaxar, sem remover sua atenção, aquele espaço da mente chama-se sabedoria discriminativa. Você não abandona o desejo – antes, revela sua natureza de sabedoria.

  

Texto extraído do Livro “Portões da Prática Budista”, por S.Em. Chagdud Tulku Rinpoche, páginas 19-30.
 
http://sobrebudismo.com.br

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