SOLIDÃO INTERIOR
Direi, portanto, acerca da santa solidão, que a atração da Graça nos
leva todos ao deserto, pela separação das criaturas, para nos
refugiarmos e nos estabelecermos em Deus.
Imagino Jesus em seu retiro,
todo absorto nas grandezas de seu Pai, e a sua santa alma imersa e como
perdida nesse maravilhoso abismo das verdades, das riquezas e das
delícias divinas.
É nessa solidão interior que devemos segui-Lo,
afastando-nos de todas as coisas da terra; e em primeiro lugar das que
estão fora de nós, como os bens, os pais, as conversas e as diversões do
século.
A boa Carmelita maravilha-se por se ver livre de tudo isso e
com a liberdade que seu estado lhe dá de tratar só de Deus e de nele
mergulhar, se assim posso dizer: é o que ela faz todas as vezes que se
volta para si mesma; como aquelas pessoas que, cansadas de carregar um
pesado fardo, põem-no abaixo para descansar; ou àqueles navios que, ao
saírem de um rio onde estavam apertados, adentram o mar, onde, de vento
em popa, navegam a plenas velas.
Assim a alma liberta de tudo ganha o alto-mar em Deus; não vê, não sente
senão Deus, não por um conhecimento distinto das divinas perfeições,
mas por uma visão confusa do Ser soberano, por um gosto universal do
soberano bem, por ela vislumbrado mais ou menos como olhamos o mar, onde
só vemos uma imensa e uniforme extensão de água.
Nesse simples olhar, a
alma saboreia seu verdadeiro contentamento; e, mergulhando fundo no
oceano da divindade, lá encontra, por fim, as riquezas particulares e
distintas que estão em Jesus Cristo: assim como os que mergulham bem
longe no mar, ali encontram o coral, as pérolas e as outras coisas
preciosas que ele encerra.
Mas o segredo para isso é afastar-se muito da
terra e de todos os objetos exteriores, sem lhes dar afeto, sem neles
buscar apoio e sem neles procurar sua própria satisfação. Isso não
basta: também é preciso afastar-nos e separar-nos de tudo o que temos de
próprio, de nossos interesses, de nossos planos, de nossas vontades, de
nossas inclinações, de nossos sentimentos, de nossas maneiras humanas e
naturais, até de nossos gostos sobrenaturais; entregando-nos a tudo,
até à morte, como quem embarca se entrega aos trabalhos da navegação, às
tempestades, aos naufrágios, a todos os perigos do mar.
Esse perfeito despojamento de nós mesmos é a última disposição para
entrarmos na divina solidão, aonde a Graça nos atrai e onde, não estando
limitados, gozamos de uma imensa liberdade. Daí vêm aqueles santos
arroubos do coração livre, que, vendo-se só com Deus só, mergulha em
Deus com um profundo recolhimento: daí vinha esse admirável fervor de
nossa Santa Mãe, que víamos sempre voltar-se para Deus com a mesma
rapidez com que um grande rio vai perder-se no mar. Isso vem da perfeita
liberdade que a alma recolhida possui em seu deserto.
Père Surin
Rainer Rilke afirmou algo muito verdadeiro, que todos e, cada um de nós, um dia, teremos que experimentar: "Uma coisa é necessária: A solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que precisamos chegar. Estar só, como a criança está só". Fernando Pessoa, assevera: "Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um". Viver a verdadeira solidão é como entrar em trabalho de parto; as dores, as contrações... e ninguém pode assumir esse momento por ninguém... cada um necessita penetrar nesse 'deserto' e encontrar-se consigo mesmo... enquanto não realizarmos essa peregrinação estaremos 'em trabalho de parto'. Protelar o encontro interno é cruel; é como viver em guerra; haverá sempre algo faltando e estaremos correndo, lutando atrás desse 'algo', que no mundo não encontraremos. KyraKally
Nenhum comentário:
Postar um comentário