O MISTICISMO
DO SOM E DA MÚSICA
Última Parte
O efeito
produzido pelo canto depende da profundidade do sentimento do cantor. A
voz de um cantor compassivo é muito diferente da voz de um que é
desprovido de emoção. Não importa o quanto uma voz seja artificialmente
cultivada, ela nunca irá produzir sentimento, graça e beleza, a menos que
o coração seja cultivado também. O canto tem uma dupla fonte de
interesse: a graça da música e a beleza da poesia. Na proporção de
quanto o cantor sente as palavras que ele canta, um efeito é produzido
sobre os ouvintes; seu coração, por assim dizer, acompanha a música.
Embora
o som produzido por um instrumento não possa ser produzido pela voz,
ainda assim o instrumento é totalmente dependente do homem. Isso explica
claramente como a alma faz uso da mente e como a mente governa o corpo.
Ainda assim, parece como se fosse o corpo que é o agente e não a mente,
e a alma é deixada de fora. Quando o homem ouve o som de um instrumento
e vê as mãos do instrumentista trabalhando, ele não vê a mente operando
por de trás e nem o fenômeno da alma. A cada passo do ser mais interno
em direção à superfície há um aparente progresso que parece ser mais
positivo. Porém, cada passo para a superfície implica limitação e
dependência.
Não
há nada que não possa servir como um veículo para o som, embora o tom
manifeste-se mais claramente através de um corpo sonoro do que por um
corpo sólido, pois o primeiro é mais aberto às vibrações, enquanto que o
último é fechado. Todas as coisas que dão um som claro mostram vida,
enquanto que corpos sólidos entupidos de substância parecem mortos. A
ressonância é a reserva de tom, em outras palavras é a repercussão do
tom que produz um eco. Sob esse princípio são feitos todos os
instrumentos, a diferença residindo na quantidade e na qualidade do tom,
o qual depende da construção do instrumento.
O efeito da música instrumental também depende da evolução do homem que
expressa com a ponta de seus dedos sobre o instrumento seu grau de
evolução; em outras palavras, sua alma fala através do instrumento. O
estado da mente do homem pode ser lido por seu toque no instrumento,
pois por mais hábil que ele seja, ele não pode produzir, por mera
habilidade, a graça e a beleza que atraem o coração sem um sentimento
desenvolvido dentro dele mesmo.
Após
a música vocal e a instrumental vem a música motora da dança. O
movimento é a natureza da vibração. Cada movimento contém em si um
pensamento e um sentimento. Essa arte é inata no homem. O primeiro
prazer de um bebê na vida é divertir-se com o movimento de suas mãos e
pés, uma criança ao ouvir música começa a mexer-se. Mesmo os animais e
pássaros expressam sua alegria em movimentos. O pavão, orgulhoso com a
visão de sua beleza, mostra sua vaidade na dança, da mesma forma a cobra
sai do cesto e balança seu corpo ao ouvir a música do pungi.
Tudo isso prova que o movimento é o sinal da vida e quando realizado com
música ele coloca tanto o artista quanto e espectador em movimento.
Os
místicos sempre olharam para esse tema como uma arte sagrada. Nas
escrituras hebraicas encontramos Davi dançando diante do Senhor, e os
deuses e deusas dos gregos, egípcios, budistas e brâmanes são
representados em diferentes posturas, todas tendo um certo significado e
filosofia relacionado com a grande dança cósmica que é a evolução.
Mesmo nos dias de hoje entre os Sufis no oriente, a dança chamada sama ocorre em suas reuniões, pois a dança é consequência da alegria. Os dervixes no sama dão vazão a seu êxtase em Raqs, o que é considerado com grande respeito e reverência pelos presentes e é em si mesmo uma cerimônia sagrada.
A
arte da dança degenerou muito devido a seu mal uso. A maioria das
pessoas dança ou para se divertir ou se exercitar, frequentemente
abusando da arte em sua frivolidade.
Melodia e ritmo tendem a produzir uma inclinação para a dança. Para
resumir, a dança pode ser dita como sendo uma expressão graciosa do pensamento
e do sentimento sem pronuncia de nenhuma palavra. Ela pode ser usada
também para impressionar a alma através do movimento, produzindo uma
imagem ideal diante dela. Quando a beleza do movimento é tomada como um
pressentimento do ideal divino a dança se torna sagrada.
A
música da vida mostra sua melodia e harmonia em nossas experiências
diárias. Cada palavra dita, ou é uma nota verdadeira ou uma nota falsa,
de acordo com a escala de nosso ideal. O tom de uma personalidade é
áspero como uma corneta, enquanto que o de outra é brando como as notas
de uma flauta.
O
progresso gradual de toda a criação de uma evolução inferior até a mais
elevada, sua mudança de um aspecto para outro, é mostrada como na
música onde uma melodia é transposta de uma clave para outra.
A
amizade e a inimizade entre os homens, seus gostos e desgostos, são
como acordes e dissonâncias. A harmonia da natureza humana e a tendência
humana à atração e à repulsão são como o efeito dos intervalos
consonantes e dissonantes na música.
Na
ternura do coração o tom torna-se um semitom e quando o coração é
partido o tom se quebra em microtons. Quanto mais terno se torna o
coração mais cheio o tom ele se torna, quanto mais duro o coração fica
mais morto ele parece.
Cada nota, cada escala e cada som extinguem-se no momento determinado e no final da experiência da alma aqui o finale chega. Mas a impressão permanece, como um concerto num sonho, diante da visão da consciência.
No
que diz respeito à música do absoluto, o baixo, o subtom (ou o tom
sutil), prossegue continuamente, mas na superfície e sob as várias notas
de todos os instrumentos da música da natureza esse tom sutil está
escondido e subjugado. Cada ser com vida vem à superfície e novamente
retorna para o lugar de onde veio, assim como cada nota tem seu retorno
ao oceano de som. O subtom desta existência é o mais alto e o mais
brando, o mais elevado e o mais baixo. Ele oprime todos os instrumentos
de tom alto ou baixo, agudo ou grave, até que todos se fundam nele. Esse
subtom sempre é, e sempre será.
O
mistério do som é misticismo; a harmonia da vida é religião. O
conhecimento das vibrações é metafísica e a análise dos átomos é
ciência, seu agrupamento harmonioso é arte. O ritmo da forma é poesia e o
ritmo do som é música. Isso mostra que a música é a arte das artes e a
ciência de todas as ciências e ela contém a fonte de todo conhecimento
dentro de si.
A
música é chamada de a arte divina ou celestial, não apenas porque ela é
em si uma religião universal, mas por causa de sua sutileza em
comparação com todas as outras artes e ciências. Cada escritura sagrada,
ilustração sagrada ou palavra falada sagrada, produz a impressão de sua
identidade sobre o espelho da alma, mas a música permanece diante da
alma sem produzir nenhuma impressão deste mundo objetivo nem em nome nem
em forma, assim preparando a alma para realizar o infinito.
Reconhecendo isso, o Sufi chama a música de giza-i-ruh,
a comida da alma, e usa a música como uma fonte de perfeição
espiritual, pois a música ventila o fogo do coração e a chama que surge
dele ilumina a alma. O Sufi tira muito mais proveito da música em suas
meditações do que em qualquer outra coisa. Sua atitude devocional e
meditativa torna-o sensível à música, a qual ajuda-o em seu
desenvolvimento espiritual. A consciência, através da ajuda da música,
primeiramente liberta-se do domínio do corpo e depois da mente. Uma vez
isso realizado, apenas mais um passo é necessário para atingir a
perfeição espiritual.
Os
Sufis de todas as épocas tiveram um sério interesse na música em
qualquer terra em que residiram. Rumi adotou especialmente essa arte por
conta de sua grande devoção. Ele ouvia os versos dos místicos sobre o
amor e a verdade cantados pelos qawwals, os músicos, com o acompanhamento da flauta.
O
Sufi visualiza o objeto de sua devoção em sua mente que é refletido
sobre o espelho de sua alma. O coração, o fator do sentimento, é
possuído por todos, embora ele não seja um coração vivente em todas as
pessoas. O coração é tornado vivo pelo Sufi que dá vazão aos seus
sentimentos intensos em lágrimas e suspiros. Ao fazê-lo, as nuvens do jelal,
o poder que congrega com seu desenvolvimento psíquico, caem em lágrimas
como gotas de chuva e o céu de seu coração é clareado, permitindo a
alma brilhar.
Essa condição é considerada pelo Sufi como um êxtase sagrado. O wajad, ou êxtase sagrado que os Sufis experimentam como regra no sam'a,
pode ser dito ser a união com o Desejado. Existem três aspectos dessa
união que são experimentados pelos diferentes estágios de evolução.
O
primeiro é a união com o ideal reverenciado do plano da terra, presente
diante do devoto, seja no plano objetivo ou no plano do pensamento. O
coração do devoto, repleto de amor, admiração e gratidão, torna-se capaz
de visualizar a forma de seu ideal de devoção enquanto escuta a música.
O
segundo passo no êxtase e a parte mais elevada da união é a união com a
beleza de caráter do ideal, não importando a forma. A música em louvor
ao personagem ideal ajuda o amor do devoto a brotar e transbordar.
O
terceiro estágio no êxtase é a união com o divino Amado, o mais elevado
ideal, que está além da limitação do nome e da forma, da virtude e do
mérito; com o qual a alma tem constantemente buscado a união e a quem
ela finalmente encontrou. Essa alegria é inexplicável. Quando as
palavras dessas almas que já atingiram a união com o divino Amado são
cantadas diante daquele que está trilhando o caminho do amor divino, ele
vê todos os sinais no caminho descritos naqueles versos e isso é um
grande conforto para ele. O louvor Daquele assim idealizado, tão
diferente do ideal do mundo em geral, preenche-o com uma alegria além
das palavras.
O
êxtase manifesta-se em vários aspectos. Às vezes o Sufi pode estar às
lágrimas, às vezes pode estar suspirando, às vezes ele se manifesta em Raqs, movimentos. Tudo isso é considerado com respeito e reverência por aqueles presentes na assembleia do sam'a,
pois o êxtase é considerado uma bênção divina. O suspiro do devoto
ilumina um caminho para ele no mundo invisível e suas lágrimas lavam o
pecado de eras. Toda revelação segue o êxtase, todo o conhecimento que
um livro jamais poderá conter e que a linguagem jamais poderá expressar,
nem um professor ensinar, vem a ele por si mesmo.
Hazrat Inayat Khan
Fonte:portaldoconhecimentodivino
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